Jurista Fábio Comparato analisa a relação entre judiciário, governo federal e o povo brasileiro

Compartilhe

Em entrevista à edição especial da revista Carta Capital (n°. 578, de 2010), o jurista brasileiro Fábio Konder Comparato faz observações e críticas sobre a Constituição brasileira e sobre o governo Lula. O jurista, que também é p rofessor emérito da USP, doutor pela Sorbonne e Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, também tece alguns comentários sobre o judiciário brasileiro, no que tange ao seu funcionamento e sua relação com a Presidência da República..
As críticas do professor apontam, em sua maioria, para ações que tornariam o judiciário mais independente de relações políticas e mais próximo da população, que, de acordo com Comparato, não tem participação na Justiça tampouco consciência de seus direitos. Por outro lado, o jurista é implacável ao criticar a postura por vezes parcial da Justiça quando se trata de réus poderosos e o uso dos bens públicos para defesa de interesses privados, tais como a distribuição de cargos e o favorecimento a terceiros.

Veja abaixo trechos específicos da entrevista, reproduzidos do site da revista Carta Capital, nos quais ele se refere ao poder judiciário brasileiro.

“CartaCapital: O fato de escândalos virem à tona hoje seria sinal de uma melhora no País? O sistema jurídico funciona a contento?

Fábio Konder Comparato: Eu descobri, num conto de Machado de Assis, a explicação que sempre procurava sobre o caráter nacional brasileiro. O conto é “O Espelho” e trata-se de alguém que numa roda de amigos afirma com espanto geral que cada um de nós tem duas almas. Tem uma alma externa que é aquela sempre mostrada ao público e, muitas vezes, é utilizada para nos julgarmos. E tem uma alma interna que é sempre escondida e serve para nós julgarmos o mundo de dentro para fora.

O nosso sistema jurídico político de fato tem duas almas, ele é dúplice em ambos os sentidos da palavra: é dobrado e dissimulado. Existe a alma externa que pode ser resumida no princípio de que todos são iguais perante a lei, mas existe a alma interna que não sustenta, mas está plenamente convencida de que há sempre alguns que são mais iguais do que os outros.

CC: O senhor poderia dar um exemplo?

FKC: Os exemplos abundam. Nesse particular, gostaria de lembrar mais um exemplo literário. Nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “ora a lei, a lei é o que senhor major quiser”. Então, completa o Manuel Antonio de Almeida: “o major sorriu-se com cândida inocência”. É um pouco isto.

A lei existe, em princípio, igual para todos. Mas sabemos. Como no último caso do “Arrudagate” em Brasília, a lei penal dificilmente se aplica ou não se aplica a todos aqueles que estão no poder. É exatamente isso que explica o fato de termos uma Constituição modelar, mas a nossa vida política estar muito longe do modelo constitucional. A Constituição se abre com a declaração de que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de Direito e, na verdade, nós não temos nem República, nem Democracia, nem Estado de Direito.

CC: Por que não?

FKC: No Brasil não existe a consciência de bens públicos. Quando um bem não é propriedade particular de alguém, ele não pertence a ninguém. Então, a grilagem de terras públicas e a utilização de canais de comunicação, com o espaço público usado para a defesa exclusiva de interesses privados, é a regra geral. Um outro exemplo que todos conhecem no exercício dos cargos públicos: existe uma regra de ouro (uma referência moral): ’Mateus, primeiro aos teus’. (grifo e negrito nossos) Quanto à democracia, a nossa alma interior, para voltar à comparação inicial, é e sempre foi a oligarquia. Povo não existe porque, a rigor, ele só passa a ter consciência dele mesmo nas grandes disputas futebolísticas. Fora disso, o povo não tem consciência de que ele existe, de que é digno e merece ser tratado com respeito.

Numa democracia, a norma ou conjunto de normas supremas que é a Constituição, obviamente, tem que ser aprovada pelo soberano. A soberania do povo é o supremo poder de controle. Mas nenhuma Constituição brasileira, até hoje, foi aprovada pelo povo. A atual Constituição já foi remendada 68 vezes, o que dá a apreciável média de mais de três remendos por ano. Em nenhuma dessas ocasiões chegou-se sequer a pensar em consultar o povo. Já não digo pedir a aprovação. E o Estado de Direito? Vou dar um exemplo gritante: os controles jurídicos sobre os poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público são muito débeis, em alguns casos totalmente inexistentes.

Um exemplo atual com relação ao Ministério Público Federal: em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB), por uma proposta minha, decidiu ingressar com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no STF objetivando a definição, pelo tribunal, sobre a abrangência da lei de anistia de 1979. Ela beneficia ou não os homicidas, torturadores, estupradores do regime militar? Pela lei que rege essa demanda, o Ministério Público, quando não é o arguente, tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria Geral da República foi intimada no dia 2 de fevereiro de 2009 a se manifestar e, até hoje, mais de dez meses depois, não devolveu os autos. Em agosto desse ano eu fiz uma petição ao relator, pedindo a ele que mandasse requisitar os autos. Essa petição não foi sequer despachada porque os autos não estavam no STF.

Ora, existe uma lei que regula os casos de improbidade administrativa. Um deles é deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei. Acontece que esta ação de improbidade administrativa é proposta unicamente pelo Ministério Público. Então, o que pode fazer a OAB? Representar à Procuradoria Geral da República dizendo que o seu chefe cometeu uma improbidade administrativa?

CC: No Brasil, se criou um discurso de um órgão de controle externo do judiciário onde, na sua composição, a maioria dos controladores são magistrados. Como o senhor vê esse quadro de não participação do cidadão na Justiça?

FKC: É a ausência do Estado de direito. Os antigos diziam: “é preciso que haja governo das leis, não governo dos homens”. Hoje, nós consagramos no mundo inteiro o princípio da separação de poderes. Mas esquecemos que o principio da separação de poderes é uma das formas de controle do poder. Existe uma outra forma que é a vertical, ou seja, do povo em relação àqueles que estão exercendo cargos públicos. Em relação ao Judiciário, os controles são mínimos, senão inexistentes. E o que é mais extraordinário para nós é verificar que a Constituição imperial de 1824 tinha uma ação popular criminal contra juízes de direito. Eu vou ler o artigo 157: “Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles, juízes de direito, ação popular que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo guardada a ordem do processo estabelecida na lei.”.

Hoje, é obvio que precisamos instituir ouvidorias populares em relação ao funcionamento do Judiciário. Isso desde o município até os órgãos superiores. Uma das formas mais abusivas de manifestação dos magistrados é o fato de eles se considerarem livres para fazer quaisquer comentários sobre a situação política econômica e social do País e, até mesmo, sobre causas em curso. Propus ao conselho federal da OAB que se incluísse no código de ética da magistratura a proibição do magistrado dar entrevistas à imprensa. A declaração dele tem que ser nos autos. No momento em que o Judiciário brasileiro perde a confiança ou não adquire a confiança ele está sujeito a ratear. As questões mais importantes acabam não sendo decididas ou são decididas em função de interesses particulares.

CC: Cortes constitucionais na Europa têm juízes com mandatos de sete anos sem recondução. Poderia ser fixado um tempo de mandato?

FKC: Em princípio, sou a favor para os tribunais superiores. No meu projeto de constituição de 1985, eu previa isto. Previa também uma regra de estrito controle da atuação dos magistrados no que diz respeito à honestidade. O fundamental é estabelecer uma regra de nomeação que não passe pela Presidência da República. No Brasil, não temos um sistema presidencial de governo. Temos o presidencialismo. O presidente da República Federativa do Brasil tem mais poderes que o presidente dos Estados Unidos, sobretudo no caso de nomeação de juízes para os tribunais superiores. Sei o que é isso porque tenho acompanhado no conselho federal da OAB a disputa para obter as boas graças do presidente. E não é só para magistrados dos tribunais superiores. No caso de chefe do ministério público, é um absurdo total. Vejam agora o caso do governador José Roberto Arruda. É só o procurador geral de justiça do Distrito Federal que pode denunciá-lo. Mas ele foi nomeado pelo Arruda. Como vai denunciá-lo?

A mesma coisa acontece com os juízes do STF. Alguém do próprio Supremo me contou que o atual presidente da República em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que os ministros chamados não cumpram a vontade do presidente. Eu tive a ocasião de dizer ao Lula, em março de 2003, quando fui visitá-lo em Brasília e estava próxima a nomeação de um ministro do STF: “Lula, você tem que saber que o ministro do Supremo não é juiz do presidente da República. Ele não está ligado ao presidente. Ele é um juiz que deve gozar da confiança do povo. Você tem que escolher o melhor na sua apreciação, mas não necessariamente aquele que é mais ligado a você”. Naquela época, eu ainda tratava o ilustre presidente de você porque tinha um longo período de amizade.

CC: Havia uma regra de ouro (uma referência moral) de que, para uma função no Supremo, não se postula e também não se rejeita.

FKC: Foi dita por Afonso Pena, por ocasião da nomeação de Pedro Lessa (em 1907). Ele sugeriu o nome e o Pedro Lessa, que era um ilustre professor catedrático de filosofia de direito, mineiro, como o presidente Afonso Pena, tomou o trem e foi ao Rio de Janeiro. Disse ao presidente que ficava muito honrado com aquela lembrança do nome dele, mas que ele não poderia aceitar porque tinha um grande escritório de advocacia em São Paulo e era professor da faculdade de Direito. Afonso Pena ouviu tranquilamente e limitou-se a dizer: professor, eu cumpri meu dever, agora resta saber se o senhor vai cumprir o seu. E ele voltou para São Paulo e mandou um telegrama dizendo que aceitava.

CC: Um jurista disse recentemente que os primeiros seis meses de um ministro não podiam ser levados muito em conta porque ele teria algumas obrigações com relação ao chefe do executivo que o tinha nomeado. Isso existe? É possível alguém com formação jurídica não saber que o juiz é independente?

FKC: Em muitos casos sim, tanto que eu soube do desconsolo do presidente em relação ao ministro por ele nomeado que votava contra os interesses do governo. E ele reclamou, com a linguagem elegante que lhe é peculiar, desse ministro. Alguém observou a ele que o ministro não era subordinado à Presidência. A respeito da independência, acho natural que haja um sentimento de gratidão. Entre vários concorrentes, se eu sou o escolhido e tenho certeza de que não fui pressionar aquele que me nomeou, sinto um respeito e gratidão pelo responsável pela nomeação. Mas é exatamente isso que não deve acontecer. Eu volto ao caso do procurador-geral da República e do procurador-geral de Justiça nos estados e no DF. Ele é nomeado e algum tempo depois recebe um inquérito em que o chefe do executivo está envolvido em corrupção. O que ele vai fazer?

Vai pedir uma audiência ao chefe do executivo e perguntar: “O senhor me permite que eu o denuncie?” Quais são os casos históricos de chefes de executivo que foram denunciados pelo chefe do Ministério Público? Eu só conheço um. É um grande mérito daquele que pôde assim proceder, o Dr. Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da República entre 1989 e 1995). Ele denunciou o então presidente Fernando Collor. Um outro aspecto que me leva a condenar a nomeação de juízes de tribunais superiores pelo presidente é que, praticamente, não há controle do Senado. Nos Estados Unidos, mais de 50 juízes indicados pelo presidente não foram aceitos pelo Senado. No Brasil só houve um caso.

CC: E não temos um foro privilegiado para examinar de pronto a violação de princípios fundamentais. Por outro lado, temos foro privilegiado para as autoridades, bem como prisão especial…

FKC: É porque nós não temos espírito republicano. Como eu dizia, o espírito republicano está nos costumes e na mentalidade social, de modo que nós temos que trabalhar nesse sentido. Como reformar a mentalidade social, como reformar os costumes? Eu tenho a grata satisfação de ter procurado contribuir modestamente nesse sentido e criei uma escola de governo, em São Paulo, e já conta com algumas filias fora de São Paulo.
É um trabalho lento, mas ele tem que ser feito no sentido de abrir a mentalidade para essa necessidade de se considerar que o bem comum do povo está sempre acima do interesse particular, seja de sindicatos, de partidos, de igrejas, da própria burocracia estatal. E isso significa que numa verdadeira sociedade republicana não há privilégios, ou seja, ninguém pode gozar de um direito especifico só para ele. A palavra privilégio vem do latim (privilegium, formado a partir de privus, privado, e lex, lei), ou seja, uma lei particular, além das leis gerais fazem-se leis específicas para beneficiar fulano ou sicrano.”

Compartilhe

Veja também

Pessoas que acessaram este conteúdo também estão vendo

Busca

Notícias por Data

Por Data

Notícias por Categorias

Categorias

Postagens recentes

Nuvem de Tags