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Bruno Farah, em seu artigo “Da depressão ao assédio organizacional: efeitos humanos do poder paradoxal nas empresas pós-disciplinares”, publicado no livro Assédio moral e organizacional: novas modulações do sofrimento psíquico nas empresas contemporâneas, desenvolve um discurso inovador sobre as possíveis causas da depressão no trabalho a partir do aprofundamento de fragmentos do discurso contido no livro de Gaulejac: “Gestão como doença social”, onde este autor analisa entre outros fatores de sofrimento no mundo do trabalho atual, a questão das metas impossíveis de serem cumpridas, o que gera como consequência em quem trabalha um sentimento de “insuficiência”, isto é, de se sentir culpado por ”não dar conta do serviço”, mesmo sabendo que ele é impossível de ser cumprido no prazo estabelecido pelo gestor. Bruno apoia sua tese também no pensamento Ehrenberg, que afirma que “as empresas são a ante sala da depressão”.
No momento atual, quando o serviço público se torna o alvo do projeto neoliberal, que busca a desregulamentação de direitos, flexibilidade do trabalhador, terceirização, para ser multifuncional, palavras como modernizar, busca de celeridade, desempenho individual repetem o mesmo discurso da iniciativa privada, mas como já falamos em outro artigo: “O trabalho e a produtividade dos servidores do Judiciário”, o serviço público é similar ao de prestação de serviços, pois não produz uma mercadoria, mas no caso do judiciário o trabalho do servidor e magistrado tem como função apaziguar os conflitos sociais e individuais, através do processo jurídico. É um serviço prestado a sociedade.
Bruno Farah entrelaça estes dois autores (Gaulejac e Ehrenberg) com o saber psicanalítico e sua experiência como psicólogo do TRF 2, conseguindo um salto qualitativo na análise do sistema punitivo psíquico, postulado por Freud (superego), que é deslocado do conflito psíquico subjetivo — permitido/proibido —, para o conflito laboral entre o possível/impossível. Reforçando seu argumento a partir da lógica desenvolvida por Foucault sobre o poder disciplinar, Bruno contextualiza este poder disciplinar como a “essência das relações no judiciário enquanto instituição”, em oposição à proposta de iniciativa, independência, autonomia e auto-responsabilização do trabalhador, proposições de Ehrenberg, (1998), como elementos constitutivos do trabalho que gere identidade com quem o executa, ou seja não apenas cumprir ordens, mas participar de forma ativa, dialógica da dinâmica laboral.
Ao apoiar a tese que a depressão “é produto e simultaneamente produtora da sociedade pós disciplinar”, Bruno, neste recorte que faço, trabalha o conceito freudiano, de “ideal do ego”, que seriam os valores introjetados pelo ego, e que a instância superego usa como medida de valor, para punir o ego, no descumprimento ou transgressão dos valores do ideal do eu, na dinâmica do conflito psíquico postulado pela psicanálise. Ora o ideal do ego é uma construção imaginária (individual e social) que é referendada ou não por outro (sujeito) ou pela sociedade em que estamos inseridos. Por exemplo, se penso que sou inteligente, é o doutorado que socialmente confirma minha inteligência, se quero ter dinheiro, é meu sucesso financeiro que comprova meu valor do ideal do ego – ser rico. No trabalho, a valorização do meu trabalho passa pelo reconhecimento de colegas e, principalmente, das chefias, sendo a avaliação de desempenho o referencial da qualidade do trabalho executado. Mas o que fazer se uma política de metas e produtividade instância, sem a participação dos trabalhadores, com o controle da produtividade feito de forma quantitativa via informática faz com que o excesso de trabalho crie em mim uma imagem de incompetente, pois “não dei conta do trabalho”, “não dei conta de cumprir as metas e de aumentar a produtividade”. Quando meu ideal do eu (ser um bom trabalhador) não corresponde à realidade, a depressão pode ser um dos efeitos desta ruptura psíquica.
Nas palavras de Bruno “Recorreremos à teoria psicanalítica para circunscrever a primazia do ideal do ego na contemporaneidade como instância psíquica agenciadora do laço social, substituindo a face repressora do superego com suas exigências de interdição imiscuindo-se intimamente à nova dinâmica do poder paradoxal e, consequentemente, á produção de violência.
A culpa neurótica que sempre foi entre o conflito/desejo entre o permitido e o proibido se desloca no mundo do trabalho para a questão do possível e impossível, gerando assim a vergonha de ser incompetente, ou seja, não ter a competência laboral que achava ter, e como expressão deste fracasso, a vergonha e culpa de não ser capaz de cumprir as metas e aumentar a produtividade.
Segundo Bruno Farah, “no plano subjetivo, o declínio da autoridade simbólica vincula-se à crise das categorias de neurose, conflito e culpa, em prevalência das de depressão, insuficiência e vergonha. Se a neurose testemunha um mal-estar da culpabilização imerso no imaginário da lei e da disciplina, a depressão deflagra um sofrimento relacionado ao medo e a vergonha de se sentir insuficiente, de não estar à altura dos ideais de ação contemporâneos.”
A produtividade individual chega um ponto que é o limite de cada um, somente o outro baterá minhas metas, pois chegando ao limite, a tendência é diminuir a produtividade, pois já chegamos ao esforço máximo, que é o limite individual. Faço uma comparação com os jogos olímpicos, onde os recordes olímpicos são batidos por outros competidores, pois raríssimos são os competidores que batem seu próprio recorde. Entretanto, no mundo do trabalho temos sempre que estar batendo nossas metas, produzir mais, mesmo que levando trabalho para casa, sacrificando o lazer, viagem, família em função deste trabalho que nunca tem fim, pois com o processo judicial eletrônico o cidadão, o advogado pode inserir seu processo no sistema judiciário 24 horas por dia, mas o servidor e o magistrado tem sua jornada de trabalho e cinco dias semanais de trabalho para dar conta deste trabalho. Portanto, se uma vara, secretaria ou seção judiciária atualizar todo o trabalho na sexta-feira, na segunda-feira haverá já uma enorme demanda de processos.
Este trabalho sem fim remete ao mito de Sísifo, que tinha que rolar uma pedra até o alto de um monte mas chegando lá, a pedra descia e no outro dia Sísifo tinha que fazer o mesmo trabalho cansativo e interminável. Este seria o melhor paralelo com o trabalho no serviço publico, e buscamos enquanto profissionais de saúde alertar, prevenir, sobre o efeito adoecedor para a saúde do trabalhador, desta política absurda de sempre exigir mais metas e produtividade. Este modelo de gestão implementado no sistema bancário, por exemplo, teve como consequência um alto índice de adoecimento dos bancários conforme relatados em estudos e pesquisas científicas.
O professor doutor Christophe Dejours, especialista em psicanálise, saúde e trabalho, professor titular da cadeira de Psicanálise, Saúde e Trabalho do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios, em Paris (França), e diretor de pesquisa na Universidade René Descartes Paris V, em palestra do TST em 2017, afirmou que “um suicídio de um juiz francês por causa da política de metas e produtividade, implementada no judiciário francês, foi um dos motivos para que houvesse uma revisão desta política”. No Brasil “o aumento de doenças mentais nos tribunais e suicídios, são a revelação deste mal estar no trabalho.
Segundo Bruno Farah o sentimento de insuficiência é prevalecente nas depressões contemporâneas.
Se a culpa esta ligada a consciência moral (permitido/proibido), o sentimento de insuficiência esta associado ao ideal do ego.”(FARAH, 2012). Os ideais sociais, segundo o autor associam-se a capacidade de ação na sociedade pós disciplinar ao ser capaz de fazer.
O ideal do ego, é uma fantasia que criamos, fundada nos valores dos pais e educadores, é a medida para o superego punir ou reconhecer o narcisismo desta construção, pois quando tenho sucesso, minha autoestima sobe, mas ao não dar conta do trabalho a vergonha é a punição por não ser competente, por não corresponder aos valores do ideal do eu, ou seja, cria-se uma ferida narcísica. Bruno citando Mendelovich, constata que o superego encontra-se desempedido para canalizar toda sua agressividade para o ego, forçando “que o sujeito alcance de qualquer maneira as METAS, edificadas pelo ideal do ego.
Uma política de metas com o controle da produtividade de varas e secretarias, cria uma disputa, pois coloca secretaria contra secretaria, vara contra vara, servidores contra servidores e nestas relações surge o assédio moral, as humilhações e as perseguições, e com elas o sofrimento e o adoecimento. Entretanto, diferente da iniciativa privada, o servidor adoecido não tem reposição, devido a política de cortar custos do serviço público. Assim o trabalhador adoecido sofre por não dar conta de bater suas metas, tem vergonha e culpa no afastamento por transtorno metal ou emocional e sente a cobrança dos colegas na volta ao trabalho, pois com sua ausência “a produtividade diminuiu” ou então os colegas tiveram que fazer o trabalho do adoecido. Enfim um clima bem hostil para quem volta ao trabalho após vivenciar uma crise psíquica emocional.
O sistema de gratificação (funções comissionadas e cargos de chefias) são moedas de troca e muitas vezes matéria prima do abuso de poder, via avaliação de desempenho, pois esta pode beneficiar ou punir, dando ou retirando a função, exigindo deste que ganhou função um maior envolvimento com o trabalho e diversas vezes com a ameaça de ter sua função retirada, pois este é uma prerrogativa das chefias no judiciário. Recompensa e punição são a moeda de troca, envolvendo o autoritarismo e o servilismo nas relações de trabalho no judiciário. A questão do juiz gestor também é outro estudo que deve ser desenvolvido, analisando seus impactos sobre a saúde do magistrado e dos servidores.
Enfim, esta é apenas um pequena resenha para que o artigo de Bruno seja lido, debatido e que a saúde do servidor tenha uma produção científica, além das já feitas sobre a saúde do magistrado. O caso “Rui, o terror de não ser capaz de fazer” e as conclusões do autor são importantíssimos para uma leitura e entendimento do que é “ter que pensar com a cabeça do juiz” e o sofrimento que isto gera ao assessor do juiz.
Este pequeno recorte que faço do artigo de Bruno é um convite ao leitor para que leiam, releiam o artigo original, pois muitas ideias boas estão contidas no texto que pode ser muito útil tanto para os psicólogos quanto para os servidores do judiciário para entender melhor suas frustrações e medos porque é o sentimento de “não dar conta mais do trabalho”, que gera culpa e vergonha de não ser o que se espera de si mesmo.
Finalizando concordo plenamente com Bruno em sua conclusão que para tratarmos o sofrimento psíquico que atormenta o laço social nas empresas contemporâneas é urgente a construção coletiva de um novo paradigma organizacional. (CASTRO, 2015)
Arthur Lobato
Psicólogo/ Saúde do trabalhador
BRUNO FARAH: Psicanalista, psicólogo da equipe de saúde do Tribunal Regional Federal da 2ª Região desde 1998.
Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Université Denis Diderot-Paris 7, Mestre em Psicologia pela UFF. Especialista em Gestão de Pessoas pela UNlCAM. Professor convidado da Escola de Magistratura Federal da 2″ Região.
Autor do livro “A depressão no ambiente de trabalho: prevenção e gestão de pessoas” (LTr Editora) e de vários artigos especializados na área.