Por Margarida L. Camargo *
Recentemente assistimos, no Supremo Tribunal Federal, a mais um debate acerca do foro privilegiado dos agentes políticos em casos de improbidade administrativa. A questão foi suscitada no final de 2002,quando um ministro de Estado havia usado um avião da FAB para o lazer dele e de sua família em Fernando de Noronha, com hospedagem no Hotel de Trânsito da Aeronáutica. O Ministério Público Federal propôs uma Ação Civil de Improbidade Administrativa, nos termos da Lei 8429/92, perante a Justiça Federal, tendo sido o réu condenado à perda dos seus direitos políticos. A União e o réu recorreram perante o STF para garantir o foro privilegiado de ministro de Estado em crime de responsabilidade. O ministro argüiu boa fé e o fato de ser esta a prática administrativa. O STF, por sua vez, aproveitou a oportunidade para dispor sobre questão de fundo, mais abrangente do que o caso em si.
Vale ressaltar o papel político da Corte Suprema quando, a despeito das partes, dispõe visando o impacto da sua decisão para todo o sistema judiciário. Ao interpretar, o tribunal modula a norma exercendo um poder de criação próximo do legislador. No caso, a tendência da Corte tem-se mostrado partidária da exclusão dos agentes políticos da incidência da Lei de Improbidade Administrativa, como é chamada. Acredita-se que ao contrário dos agentes públicos, os agentes políticos, como se essa distinção fosse possível para ministro de Estado, só poderiam ser processados e julgados por crime de responsabilidade nos termos de lei própria datada do ano de 1950, com direito a foro privilegiado por desempenho de função, e não processados e julgados nos termos da lei de 1992, cuja competência é da primeira instância. Os agentes políticos mereceriam tratamento especial por parte de um órgão colegiado superior, capaz de perceber o alcance político e institucional da condenação de uma autoridade pública para a estabilidade do governo. E como as autoridades são alvo de desafetos políticos, a Lei de Improbidade, por prever como sanção a perda do cargo e dos direitos políticos, mostrar-se-ia um poderoso instrumento de perseguição também política.
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O crime de improbidade do agente político passa a ser regido pela Lei dos Crimes de Responsabilidade, cujos termos são bem imprecisos
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A Lei 8429/92 foi criada com o objetivo claro de evitar a malversação dos recursos públicos e o beneficiamento indevido do gestor em decorrência de suas funções, no mais alto espírito republicano. Mas para evitar qualquer tipo de abuso, o STF parece procurar proteger o agente político da prática persecutória que ela facilmente promoveria. Há um recuo no tempo. O crime de improbidade do agente político, ainda que também agente público, como é o caso do ministro de Estado, passa a ser regida somente pela Lei dos Crimes de Responsabilidade, de 1950, cujos termos são bastante imprecisos. Resultado, ignora-se a vontade mais recente do legislador quando, em 1992, buscou honrar as palavras do constituinte originário. Por mais duro que seja, não podemos ignorar o que diz a Constituição em seu artigo 37, § 4º: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Agora a questão é retomada diante de muita expectativa, principalmente daqueles em situações semelhantes ou equiparáveis. E a partir das manifestações ocorridas podemos verificar a propensão do STF por uma decisão de ordem mais pragmática do que dogmática, no sentido jurídico do termo.
O pragmatismo é um modo de pensar e agir que valoriza o aspecto instrumental da ação em lugar de fundamentos teóricos. Logo, a instrumentalização do Direito estaria na sua capacidade de atender o bem-estar social, conforme o contexto e as condições do momento. Assim, a atuação do tribunal, intérprete e aplicador da lei, já apontado o seu poder de criação, assume um viés político. Acreditam os pragmatistas, como faz Richard Posner nos Estados Unidos, que as decisões judiciais não apenas atingem os outros poderes do Estado como, e por se pretenderem justas, transpõem as limitações do caso concreto. O instrumentalismo, a seu turno, baseia-se nas conseqüências antevistas da ação. Surge, assim, o que a academia tem denominado de “conseqüencialismo”. Seria uma forma de agir determinada antes pelos efeitos da decisão do que por verdades anteriormente postas. Aliás, para o pragmatismo, no seu sentido mais filosófico, as definições são construídas na prática. Em lugar de conceitos prontos, trabalha com hipóteses a serem sempre confirmadas em cada momento. Nesse sentido, o STF tem se mostrado muitas vezes pragmatista pois, em lugar de ater-se à literalidade do texto de lei, dá-lhe conformidade segundo as necessidades apresentadas pela realidade. O texto é ponto de partida mantendo-se sempre em aberto, sem nunca perder a qualidade de hipótese a ser experimentada e confirmada na prática.
No caso em julgamento, as conseqüências da abusividade “notória” no uso Lei de Improbidade Administrativa, conforme as palavras de alguns ministros, esbarra, a nosso ver, em um contexto de moralização da vida pública que não deve ser ignorado. A razoabilidade, portanto, deve preponderar. Dentre outros tantos argumentos, imagina-se as conseqüências decorrentes do poder do juiz singular, até mesmo substituto e em estágio probatório, para destituir do cargo um ministro do Supremo Tribunal Federal. Nesse rol de considerações verificamos uma motivação de ordem pragmática a prevalecer no STF, e que muito se afasta da visão tradicional do Direito de trabalhar com termos fechados. A linha de argumentação do Supremo faz todo sentido, mas outras conseqüências também devem ser consideradas: o encorajamento pela apropriação indevida da coisa pública pelos milhares de agentes políticos integrantes do sistema federativo brasileiro. A lei de 1950 não tem se mostrado eficaz para deter a escalada de abusos cometidos contra o patrimônio público. Logo, o momento nos parece propício para analisar pragmaticamente as conseqüências deste processo judicial.
* Margarida Maria Lacombe Camargo é professora da UFRJ, da UGF e Pesquisadora da Casa Rui Barbosa
Fonte: Valor Econômico