Raposa Serra do Sol: crônica de um conflito anunciado

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Os 29 mil indígenas que vivem na reserva Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima, acreditavam que, finalmente, poderiam viver em paz na terra que lutam para reconquistar há mais de 30 anos. Estavam errados. Demarcada em 1998, e homologada por um decreto presidencial em abril de 2005, em 27 de março desse ano, o governo federal anunciou uma operação da Polícia Federal para retirar os últimos ocupantes que se encontravam na área: seis produtores de arroz.

No entanto, no início de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão da retirada dos não-índios. Os ministros do Supremo deferiram liminar solicitada pelo governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), em uma ação protocolada junto ao órgão. O argumento utilizado é o de que a demarcação provocaria, entre outros problemas, a diminuição em 6% da economia do Estado.

Conflito acirrado

A suspensão da operação determinada pelo STF aumentou o clima de tensão na região. Dia 5 de maio, 10 indígenas foram atacados por jagunços do rizicultor Paulo César Quartiero, deixando dez feridos. Os índios construíam suas malocas em terras da reserva Raposa Serra do Sol, quando seus ocupantes começaram a atirar por todos os lados, tentando impedir que se fixassem no local. Paulo César Quartiero é um dos seis arrozeiros que invadiram a área indígena e hoje é prefeito de Pacaraima pelos Democratas (DEM, ex-PFL).

De acordo com Julio Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, “a situação é absurda. Os indígenas foram baleados dentro de sua própria terra, demarcada e homologada”, afirma. “Nós achávamos que a retirada dos rizicultores fosse trazer a paz e a dignidade aos povos indígenas da reserva, mas o governo demorou a agir, e em seguida veio a suspensão do STF”, diz. Para ele, a retirada dos rizicultores ainda não aconteceu porque “temos um governador racista que opta por defender o interesse de seis rizicultores, e não o de 19 mil índios”, ressalta.

Repercussão desproporcional

Na opinião do antropólogo Paulo Santilli, da Fundação Nacional do Índio (Funai), caso o STF não tivesse suspendido a operação da PF, o conflito poderia ter sido evitado. “Essa decisão do STF é, no mínimo, curiosa. O processo de retirada dos não indígenas já estava no final. Caso não tivesse essa suspensão, hoje estaria tudo resolvido na região”, acredita.

Para ele, ao impedir a conclusão final de um processo que demorou mais de trinta anos, está se abrindo possibilidade para a “crônica de um conflito anunciado”, diz

Santilli explica que havia 309 ocupantes não-indígenas na região. “Depois de um longo processo de retirada, restou apenas meia dúzia, exatamente aqueles que têm influência junto a deputados e governadores. E agora foi feito um lobby político, com repercussão desproporcional à sua composição demográfica”, avalia.

Processo demarcatório

Além disso, o antropólogo da Funai lembra que os seis arrozeiros que se negam a sair da Raposa do Sol ocuparam a área indígena em 1992, depois que ela já havia sido delimitada. “Ninguém fala que eles invadiram a área depois do processo demarcatório, e agora são defendidos pelo governador do Estado”, critica o antropólogo Luiz Cardoso de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Antropologia e professor da UNb.

A alegação do governador de Roraima é que 40% do território do Estado é ocupado por terras indígenas. No entanto, Oliveira lembra que a extensão dos 60% que restam é maior do que a soma dos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas juntos. “Isso para uma população de 400 mil habitantes. Comparando com a maior parte do território brasileiro, os habitantes de Roraima têm direito a um território per capita substancialmente superior à grande maioria dos seus concidadãos brasileiros”.

Assim, o antropólogo avalia que “não há motivos para que não possa haver um bom desenvolvimento das atividades econômicas nesses 60% de extensão”. O que está por trás desse conflito, acredita o presidente da ABA, “é uma dimensão de ganância e interesses econômicos. E o governo de Roraima está dando suporte a esses interesses escusos”.

Medida arbitrária

Apesar de no decreto presidencial de 2005 já estar previsto que a demarcação da área de 1,7 milhão de hectares seria contínua, ao julgarem a ação movida pelo governador de Roraima, os ministros do STF vão decidir também sobre o tamanho e formato da reserva. A previsão, segundo o ministro Gilmar Mendes, é que a matéria seja apreciada ainda no mês de maio.

Paulo Santilli, responsável pelo laudo de demarcação da Raposa/Serra do Sol, em 1992, e que levou à identificação e à posterior demarcação (em 1998) da área, acredita que desfazer o processo e revisar o modelo de demarcação “seria arbitrário e inconstitucional. Não há precedentes em relação a isso no país”. Ou seja, caso o modelo de demarcação contínua da Raposa/Serra do Sol seja revisto, todas as terras já demarcadas e homologadas podem ser questionadas judicialmente também. “O procedimento de demarcação pressupõe estudos etnológicos e antropológicos”.

Demarcação dividida ameaça indígenas da Raposa Serra do Sol

Caso o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue que a demarcação contínua deve ser revisada e transformada de contínua em dividida, haverá graves conseqüências para as comunidades indígenas da reserva Raposa Serra do Sol, afirmam lideranças e antropólogos.

Esses especialistas sustentam a tese de que a demarcação em área contínua dá aos indígenas uma garantia para desenvolverem suas terras da maneira que quiserem, explicam. Para Julio Macuxi, do CIR, caso a demarcação seja descontínua, “não sei para onde as comunidades serão removidas. A área já está toda ocupada, assim as terras ficariam fragmentadas e as comunidades divididas”.

Para o antropólogo Luiz Cardoso de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professor da Universidade de Brasília, é difícil calcular a extensão do prejuízos para os indígenas, “mas pode se dizer que nas reservas onde há situações similares, onde se resolve fazer a demarcação em ilhas, as populações ficam mais sujeitas à agressões, além de terem mais dificuldades para a reprodução do seu modo de vida, de sua cultura”, explica. Se a decisão do STF for nessa direção, Oliveira afirma que “será mais uma agressão dos brasileiros contra os indígenas”.

A demarcação contínua permite que grupos não-indígenas habitem parte do território contínuo, explica o professor da Unb. “A área deixa de ser totalmente indígena e eles passam a conviver com outros grupos. Isso aumenta a exposição das populações indígenas e dificulta o padrão de organização social, que envolve redes de deslocamento para atividades como caça, por exemplo”.

Já Paulo Santilli, da Funai, acredita que apesar de imprevisíveis, as conseqüências de uma mudança na demarcação das terras da reserva irão “comprometer continuidade da vida desses povos e fere totalmente o direito dos povos indígenas”. De acordo com ele, até o STF julgar o recurso, o impasse permanece, “com muitos agravantes, porque não há precedentes no país de situação semelhante a essa”, garante.

Ilhas de preservação

O presidente do STF Gilmar Mendes, propôs a discussão de uma solução alternativa à demarcação contínua de 1,7 milhão de hectares, por um modelo de ilhas de preservação. “Fiz uma ponderação de que se deve discutir o modelo em ilhas de preservação. O modelo (defendido pelo governo) é muito conflitivo. Precisamos discutir opções minimamente viáveis. O que não pode é você criar um estado e depois criar uma reserva que tenha 50%, 60% do seu tamanho. Esse processo será um aprendizado para o país”.

Para a liderança indígena Julio Macuxi, a possível alteração é arbitrária, “as comunidades já sofreram muito, 21 lideranças já morreram, 10 líderes foram baleados, e ainda querem reduzir a área da reserva. Estão é querendo dizimar o povo da Raposa Serra do Sol”, desabafa.

Fonte: Agência Brasil de Fato

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