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Entrevista exclusiva do ministro do TST Maurício Godinho Delgado para o Sitraemg

Ministro reflete sobre a persistente desigualdade no Brasil, explorando as raízes históricas e sociais que perpetuam a desvalorização dos direitos trabalhistas
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A entrevista foi realizada pelo servidor do TRT3 e filiado do Sitraemg Rubens Goyatá Campante, no mês de junho.

Na conversa com o ministro, uma referência no Direito do Trabalho brasileiro, foram abordados o Direito e a Justiça do Trabalho, as novas tecnologias de intermediação de trabalho, entre outros assuntos. Confira abaixo.

Rubens Goyatá:

Ministro, gostaríamos de agradecer imensamente ao senhor por nos conceder esta entrevista exclusiva. Começando, gostaria de conversar sobre um tema que tem a ver com o livro mais recente que o senhor lançou, e que diz respeito a uma pergunta presente neste livro, sobre as razões, as raízes do despretígio do trabalho na sociedade brasileira, sobre as dificuldades históricas de se estabelecerem direitos trabalhistas no Brasil. Um professor norte-americano, James Holston, que chegou aqui no Brasil há uns 30 anos, disse que ouviu dos brasileiros um ditado que, no início, achou curioso: “aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”. Ele comentou: para mim, que fui acostumado com a retórica da democracia liberal, em que a lei é o esteio da cidadania, de direitos de cidadania, a princípio, não entendia aquilo e os brasileiros falavam que era assim mesmo e depois eu vi que realmente a tradição histórica do Brasil é a lei ser usada como recurso estratégico dos poderosos. Bem, Holston disse isso, mas o direito do trabalho não é bem assim, não é, Ministro? Como é que fica o direito do trabalho nessa questão, as promessas civilizatórias do direito do trabalho de que o senhor fala? Essa institucionalização do direito do trabalho, que o senhor menciona no seu livro, com seus limites, com as domésticas fora da proteção trabalhista, com os trabalhadores rurais fora também, com a justiça do trabalho demorando a se capilarizar para além das grandes cidades, como é que o senhor vê, nesse panorama da tradição jurídica brasileira, a questão do Direito do Trabalho?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Primeiro, quero renovar meus agradecimentos ao Sitraemg. É um grande prazer estar aqui. Lembro que, quando tomei posse no TST, o Sitraemg fez uma entrevista comigo. Naquela época, não tínhamos o canal telepresencial. Era 2007, e vocês vieram até Brasília. Portanto, é uma satisfação muito grande retomar esse contato depois de 16/17 anos.

Sobre a pergunta, de fato, essa indagação eu também me fiz. Quando ressurgiu a crise no campo social do Direito, a partir de 2015/2016, no contexto da derrubada, em maio de 2016, do governo democraticamente eleito, deflagrando o retorno avassalador do neoliberalismo para o Brasil, com todas as suas consequências profundamente danosas, não só para o Direito do Trabalho, mas também para o Direito da Seguridade Social, além de outras políticas públicas econômicas e sociais, comecei a refletir sobre questões que até então não havia respondido.

Por que o Brasil, um país considerado um dos mais desiguais do mundo entre os países ricos, mas com um sistema econômico capitalista que oscila entre a 13ª e a 9ª economia global, ainda enfrenta tamanha tamanha desigualdade? Por incrível que pareça, embora o Brasil tenha um dos maiores PIBs do planeta, ele se situa entre os paises e economias mais desiguais existentes. Isso é uma chaga que nos persegue há séculos, e se tornou ainda mais grave após a Independência, pois, a partir desse momento, não poderíamos mais culpar Portugal; tínhamos autonomia política para implementar políticas públicas.

Essa indagação me levou a outras questões correlatas, como a exclusão da população negra e a constante desvalorização do trabalho nos discursos institucionais de várias instâncias e na mídia dominante. Existe algo além do neoliberalismo. O neoliberalismo, que é de fato muito nefasto e está presente entre nós há mais de 40 anos, não explica completamente essa realidade. A desvalorização do trabalho e dos direitos sociais no Brasil é muito forte, sempre referida com adjetivos pejorativos, como populismo, demagogia, irresponsabilidade ou caridade. Essa anomalia precisa de uma explicação mais profunda, até porque não começou apenas nos anos 1970/80.

Com essas preocupações e perspectivas, realizei uma ampla pesquisa durante o isolamento da pandemia, consultando uma bibliografia que eu não conhecia com profundidade. Estudei dezenas de livros de autores estrangeiros e brasileiros, muitos de origem negra, que ofereciam outra vertente de enfoque. Foi daí que surgiu o livro intitulado *Direito do Trabalho no Brasil*, lançado no início de 2023 e que já está na segunda edição este ano. É um livro pequeno, com cerca de 250 páginas, mas bastante informativo e um pouco ousado, pois tenta abordar 500 anos de história focados nesse aspecto específico.

Percebemos que o fato de nossa colonização e de outros países das Américas ter sido parte do sistema capitalista europeu, tendo eles um papel claramente definido como produtores de produtos agrários ou minerais para os países europeus a preços baixíssimos, esse fato fez (e continua a fazer) uma grande diferença, principalmente porque esse sistema foi estruturado a partir da escravidão. No caso do Brasil, a escravidão, que oficialmente durou até 1888, começou em torno de 1530. Foram 350 anos de um regime escravagista, tempo que fez com que a escravidão se tornasse uma dinâmica do dia a dia da sociedade brasileira. Ela não era mais apenas parte do sistema agrário exportador de açúcar ou café, ou extrativo mineral, mas passou a marcar distintivamente, de forma negativa, o exercício do poder à base da violência na própria sociedade civil, nas instituições, famílias e pessoas.

Essa opressão não se tratava mais daquele sistema em que a violência institucionalizada residia no estado e na sociedade política, como o liberalismo originário imaginou e brandiu contra o estado opressor na Europa dos séculos 17 e 18. No Brasil, havia uma opressão enorme exercida diretamente pelos seres humanos na sociedade civil, o que introjetou nas instituições públicas, privadas e nos próprios indivíduos um desprezo pelo trabalho e uma normalização da violência. Esse desrespeito pela ideia de direitos, desde que fossem direitos vinculados às classes populares, iria despontar como uma marca muito forte que ainda se mantém em nossas tradições, cultura e em nossas elites.

Durante o período imperial (1822-1889), o trabalho era considerado indigno, algo associado à população escravizada e desrespeitada. Isso está amplamente documentado em livros sobre a sociedade imperial. Interessante notar que historiadores, especialmente aqueles que se debruçam sobre a história da vida privada, têm mostrado como esse cotidiano de opressão e desapreço se manifestava nas relações privadas.

Esse ponto é crucial porque, para superar esse desapreço, é necessário implementar uma política pública muito consistente e de longo prazo, que valorize os direitos sociais e trabalhistas como algo relevante, que traduza uma concepção de cidadania ampla e que seja um pressuposto e uma resultante do exercício da democracia.

No Brasil, momentos efetivamente democráticos são muito raros. Tivemos períodos concretos de democracia de 1946 a 1964 e de 1985 até 2016. Após 2016, não se instaurou exatamente uma ditadura, mas houve um forte desprestígio nas políticas públicas em relação aos direitos de cidadania das camadas populares. Retornamos a uma situação já vista em outros períodos da história brasileira, sem que haja uma manifesta ditadura, mas com um processo de descaracterização da democracia. Afinal, a democracia só é verdadeira quando inclui também as classes populares.

Por outro lado, esse legado de exclusão foi e continua sendo combatido, felizmente, pelos setores progressistas e pelo avanço do constitucionalismo. A existência de Constituições de caráter social, como a de 1934, a de 1946, e a mais profunda e ampla de todas, a de 1988, isso mostra que não podemos olhar apenas o lado negativo. Houve avanços significativos em alguns momentos históricos, mas essa marca negativa retorna constantemente, acompanhada de um discurso que menospreza os direitos sociais.
Lembro-me de um professor importante no início da minha carreira na magistratura, há mais de 30 anos atrás, que costumava dizer: “Vocês têm que parar de serem juizes do aviso prévio; temos que tratar dos grandes temas do ser humano.” Entretanto, para quem vive do trabalho, direitos como aviso prévio, salário, 13º salário, duração do trabalho, descanso semanal remunerado, intervalos para descanso, férias anuais remuneradas, todos são direitos individuais e sociais efetivamente fundamentais. Esses direitos, embora modestos em comparação à riqueza do poder econômico e a outros temas destacados do humanismo, consistem na maneira de assegurar às pessoas que vivem do trabalho a verdadeira cidadania, em suas dimensões econômicas, sociais, institucionais, culturais e, por consequência, até na dimensão política.

Então, sobre o liberalismo, eu percebi que, na história brasileira – por isso que é importante fazer às vezes considerações mais longas – nós, na verdade, só tivemos três momentos, três períodos bem destacados em que houve uma presença forte do pensamento liberal no Brasil, liberal ou neoliberal, na linguagem mais recente dos últimos 50 anos.

Só três períodos. No Império, falarem de liberalismo, eu acho que é algo pré-científico, não comprovado por nenhum dados da realidade. A constituição de 1824, ela é basicamente uma constituição imperial e oligárquica. É melhor do que se nós não tivéssemos constituição nenhuma e fosse um simples despotismo monárquico? É, muito melhor, mas dizer que a Constituição de 1824 é uma Constituição liberal, isso não corresponde à verdade. Os elementos de exclusão são muito fortes, ela, pelo silêncio, sufraga a escravatura no Brasil e naquela época o número da população negra já próximo de 40%, segundo o censo de 1810, e o censo de 1890 mostrava, também que a população negra tinha uma dimensão muito grande.

Rubens Goyatá:

E ela foi outorgada, né? D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou- a…

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Exatamente. Voltando ao período monárquico, além desse aspecto, vamos dizer, procedimental (a outorga do diploma jurídico), que é sempre muito censurável, o mais grave é que a Constituição de 1824 se enquadra como uma constituição indubitavelmente imperial. Afinal, consideradas as suas regras, existia o Poder Moderador do monarca – um eufemismo para um poder máximo -; o imperador, além disso, é que indicava os senadores, os quais eram vitalícios, e, obviamente, eram de uma lealdade vitalícia ao monarca; os próprios deputados da câmara legislativa eram também eleitos por meio de um voto censitário baseado na propriedade e renda. Por essa primeira carta constitucional, a exclusão do sistema político-eleitoral abrangia em torno de 90% da população, uma vez que as mulheres não participavam; as pessoas escravizadas não participavam; os negros libertos, que passaram a existir em número crescente no Brasil durante o período monárquico, só poderiam participar se tivessem propriedade e renda no nível fixado pela ordem jurídica da época – o que resultava em um número muito restrito de habilitados eleitoralmente; as pessoas brancas pobres também não participavam; os analfabetos não participavam. Ora, tudo isso compunha cerca 90%, ou mais, da população brasileira.

Então, o primeiro grande momento em que o liberalismo chegou ao Brasil foi somente depois do Imperio, mediante uma ideologia claramente mencionada por parte das elites, e expressa na construção constitucional de 1891; ou seja, apenas com a instauração da república, que coincide com a Constituição de 1891. Esse liberalismo, porém, não tinha qualquer enfoque social, qualquer valorização do trabalho e dos trabalhadores, preservando, lamentavelmente, grande parte do viés segregador, preconceituoso e desigualitário do período monárquico. Houve avanços institucionais com a república? Sim, sem dúvida – e não podemos desprezar esses avanços; porém eles não foram amplos a ponto de enfrentarem as grandes chagas e desafios da nossa economia e sociedade.

Note-se, a propósito, que o outro período em que o liberalismo retornou ao Brasil e ganhou força crescente, agora sob o nome e formato de neoliberalismo, foi nos anos 1990. Isso ocorreu de forma contraditória, logo após a aprovação de uma Constituição da República humanista e social – mas essas são algumas das várias contradições que temos em nossa história. Desde o governo Collor até o final do governo em 2002, prevaleceu o pensamento neoliberal, também caracterizado por claro desapreço ao trabalho e aos direitos individuais e sociais trabalhistas. Por fim, o terceiro período em que o liberalismo retornou com força, agora também sob a marca do neoliberalismo, foi a partir de 12 de maio de 2016, com a derrubada da Presidenta da República recém-eleita, estendendo-se até o final de 2022.

Qual é uma característica clara e comum desses três períodos de significativa influência liberal? Um profundo desapreço pelos direitos sociais e pelas pessoas que vivem do trabalho e que necessitam de tais direitos institucionalizados. Reconhece-se que não houve uma exclusão completa no período de 2016 em diante, mas o desapreço é do mesmo tipo, tendo também inegável profundidade. Ou seja, nos três períodos em que o liberalismo chegou ao Brasil, ele foi fortemente excludente das classes populares. Isso é muito importante de ser percebido, pois parece que a mentalidade do establishment clássico no Brasil é, de fato, antissocial.

Evidentemente que não podemos deixar de valorizar também os períodos em que houve uma consideração maior pelos direitos sociais, como o período Vargas, de 1930 a 1945, o período democrático entre 1945 e abril de 1964 e a fase democrática inaugurada em 1985 e que se estendeu até maio de 2016, tendo como auge a Constituição de 1988 e seus efeitos democráticos e inclusivos deflagrados. Foque-se, para reflexão, ilustrativamente, no período Vargas: ora, mesmo sendo uma ditadura, em certa fase, devemos considerar o seguinte: o que foram os quase 70 anos do Império para as classes populares? E os cerca de 40 anos da República Velha? Como se sabe, esses dois longos períodos históricos foram períodos de profunda exclusão social, em particular com relação aos trabalhadores e trabalhadoras, às mulheres e à população negra. Nesse contexto comparativo, apesar de os anos Vargas terem sido, em grande parte, uma evidente ditadura, o fato é que nesse período houve relevante extensão e ampliação de direitos individuais e sociais trabalhistas e previdenciários, tudo comparado com os vários séculos anteriores. Mesmo reconhecidas e censuradas as já mencionadas exclusões (trabalhadores rurais e trabalhadores domésticos, por exemplo), tratou-se da fase de deflagração de políticas públicas inclusivas da população brasileira, em especial o largo segmento que se inseria no sistema socioeconômico por meio de seu trabalho.

De todo modo, não há dúvida de que o processo de inclusão econômica e social no Brasil se mostrou como um processo lento – embora, pelo menos, tenha sido deflagrado o seu começo nos anos 1930. Veja a exclusão dos trabalhadores rurais na legislação dos anos 1930/43, sintetizada na CLT. Demorou 20 anos, após 1943, data da CLT, para que fosse declarada a inclusão desses trabalhadores, o que ocorreu com o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963. Como quase tudo no Brasil nesse campo temático, essa inclusão se concretiza de maneira lenta. Por falta de sorte, logo após a vigência do Estatuto do Trabalhador Rural, em junho de 1963, menos de um ano depois, ocorre o golpe de estado de 1964, instaurando um regime que durou 21 anos (aliás, talvez não tenha sido simples coincidência – mas isso é outro assunto). Ora, como se sabe, sendo fato comprovado por várias estatísticas, inclusive oficiais, esse novo regime autoritário não tinha apreço pelos direitos sociais, especialmente pelos direitos trabalhistas. Houve intervenção em mais de 500 sindicatos, o que está comprovado em dados oficiais já coletados pela pesquisa científica. Houve uma restrição fortíssima aos movimentos grevistas. Ou seja, embora o direito trabalhista tenha sido estendido formalmente ao campo, ele demorou a se efetivar.

Quanto às trabalhadoras domésticas, sua real inclusão começou apenas com a Constituição de 1988. Antes disso, elas tinham apenas quatro direitos, muito poucos: inicialmente, três direitos garantidos por uma lei de 1972, que eram a assinatura da carteira de trabalho, a inserção na Previdência Social e o gozo de férias anuais remuneradas de 20 dias úteis; mais à frente, em 1987, surgiu o vale-transporte. Porém com a Constituição de 1988, o parágrafo único do artigo 7º estendeu, de imediato, oito direitos aos trabalhadores domésticos, além de abrir um flanco manifesto em favor da ampliação subsequente desses direitos – o que viria a acontecer nas duas primerias décadas do século XXI.

Vejo certa literatura e narrativa afirmando que a Constituição de 88 foi discriminatória. Penso que a história não sufraga essa interpretação. Do ponto de vista objetivo, havia uma importante categoria profissional no País fortemente excluída, até então com uma legislação especial que garantia apenas quatro direitos. Em outubro de 1988, a Constituição ampliou tais direitos em 200%, além de instigar a deflagração de um processo legislativo subsequente de novos avanços e conquistas. Ora, a Constituição da República abriu um substancial caminho para a inclusão da trabalhadora doméstica (e o trabalhador também, é claro), caminho que deveria ser obviamente ampliado pelo legislador subsequente. Tal ampliação ocorreu em 2004, com a inclusão de mais quatro direitos; em 2013, com a Emenda Constitucional 72, que garantiu mais 16 direitos, alguns multidimensionais; e, finalmente, com a Lei Complementar 150, de 2015, que trouxe mais oito direitos, alguns também multidimensionais. Quando se regula, por exemplo, a duração do trabalho, a ordem jurídica passa a estender vários direitos ao mesmo tempo, como intervalos, horários, horas extras, adicionais, entre outros.

Assim, com a mesma veemência que criticamos as longas fases de exclusão, torna-se necessário ressaltar os momentos de inclusão. Caso contrário, o que se passa é a ideia de que o País não tem solução – compreensão e estado de espírito com efeitos céticos sobre a relevância potencial progressista das políticas públicas. Ora, as políticas públicas podem ser excludentes – como é a regra no Brasil -, mas também podem ser inclusivas, democráticas e progressistas. E isso tem de ser ressaltado na análise histórica e institucional.

De todo modo, nesse longo cotejo histórico e institucional, percebe-se que, realmente, o liberalismo, quando dominante no Brasil, coloca-se numa posição de repúdio aos direitos sociais. Isso é lamentável, porque não foi o que aconteceu na Europa Ocidental, onde o liberalismo se encaixou, se adequou e compreendeu a importância dos direitos sociais, cujo ápice foi o Estado de Bem-estar Social, que está presente em cerca de 10 países europeus com bastante sofisticação, e outros 10 com menor sofisticação, mas ainda assim todos muito mais avançados do que nós.

Aqui no Brasil, esse roteiro histórico mostra um desrespeito visceral aos direitos sociais, ao trabalho e ao trabalhador. E vemos isso em vários discursos. É interessante notar, só para dar um exemplo, como funciona o pensamento econômico em nosso país. Quando cai o índice de desemprego nos Estados Unidos, isso é comemorado pelos analistas econômicos, indicando que a economia está forte, que se recuperou. Lá, o Banco Central tem um papel, desde 1915, quando foi criado, de não se preocupar, apenas, com a proteção da moeda, mas também com a proteção do emprego, porque essa é uma maneira estratégica de manter os Estados Unidos com uma economia forte. Qualquer país grande não pode ter uma população severamente desempregada ou em formas gravemente precarizadas de trabalho. Essa combinação que envolve a existência de um mercado de trabalho interno forte, além de um grande ritmo de exportações, mostra-se muito clara em economias grandes e países desenvolvidos. E o Banco Central norte-americano, com algumas ressalvas – como no início da crise de 1929, quando foi dominado pelo pensamento ultraliberal e não fez nenhuma intervenção -, é amplamente favorável à atuação pró-emprego e pró-crescimento econômico.

A diferença para o nosso Banco Central é que, aqui, uma taxa de emprego razoável é considerada um problema grave, pois se acredita ser necessário ter uma taxa de desemprego alta para que a economia funcione e não haja inflação. Essa dimensão brasileira das narrativas e das atuações institucionais também demonstra a força e recorrência da ideia de repúdio aos direitos sociais.

Rubens Goyatá:

Eu acho interessante, Doutor Maurício, porque o conteúdo do seu livro e a sua fala mostram claramente que, ao abordar a questão das razões do desprestígio dos direitos do trabalho no Brasil, o senhor foi além do Direito – embora o senhor nunca vá abandonar o Direito. A partir dele, o senhor explorou a história, a sociologia. Quando o senhor fala de instituições, para os sociólogos, instituições não se restringem às formais; elas incluem modos de fazer, de pensar, de perceber. Tudo isso são instituições no sentido de que geram comportamentos reiterados na sociedade – como esse comportamento psicossocial de desprezar os direitos sociais e trabalhistas. Então, o senhor explorou a história, a sociologia, a política, além do Direito. Isso evidencia a importância de alargar a visão, o que, acredito, o senhor fez no seu livro. Eu considero isso fundamental para entender a questão do Direito do Trabalho no Brasil.

Uma curiosidade surge quando estudamos o momento de implantação dessa estrutura, ali durante o regime Vargas. Aquilo teve um impacto tão grande na cultura política brasileira, na tradição do povo. O Brasil de 1940 era 70% rural, e os rurais estavam de fora. O Direito do Trabalho, então, valia para apenas 30% da população, e a Justiça do Trabalho era restrita, no início, às grandes cidades e capitais durante as décadas de 1940 e 50. Mesmo assim, o Direito do Trabalho teve um impacto profundo no imaginário político e na cultura política brasileira. Isso talvez revele uma carência, uma necessidade desse povo por um mínimo de direitos e civilidade. Pois, mesmo com todos os limites, mesmo com o contraponto de um Direito Coletivo Sindical de corte autoritário, o impacto durou muito tempo. O prestígio de Vargas, em grande parte, se deve às leis trabalhistas e previdenciárias, às leis sociais, apesar de, como o senhor lembrou, de 1937 a 1945 seu governo ter sido uma ditadura aberta. Mas, enfim, o Direito do Trabalho deu uma contribuição efetiva para a cidadania no Brasil. Poderia ter sido feito muito mais, porém, como o senhor diz, é importante lembrar também do que foi feito, não apenas do que não foi feito, do que faltou.

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Essa visão da ciência política é realmente importante. Quando comparamos com outros países, por exemplo, um caso muito interessante que observo e utilizo neste livro, é o caso alemão. O grande avanço que a Alemanha teve no sistema capitalista ocorreu a partir de sua unificação em 1870, sob a liderança de um chanceler, Bismarck, que governou até quase o final do século XIX. Bismarck era também um autocrata, mas teve a sabedoria de combinar uma política de industrialização da Alemanha impulsionada pelo Estado, o que fez o país recuperar o tempo perdido, considerando que estava bastante atrasado em comparação com a Inglaterra, a própria França e até os Estados Unidos. Com o impulso estatal, a industrialização alemã ganhou uma força muito grande e, em poucas décadas, atingiu um nível bastante elevado.

Ora, essa política de favorecimento do sistema capitalista, e, portanto, dos próprios empresários, porém não foi unilateral. Bismarck também implementou uma legislação trabalhista e previdenciária bastante ampla e eficiente, a qual, tempos depois, a propósito, inspiraria o governo Vargas no Brasil.

Veja que interessante: para os alemães, Bismarck é um herói nacional. No Brasil, o estadista que desempenhou um papel similar, Vargas, é visto, na versão dominante, como um anátema. Vargas é frequentemente descrito como um demagogo, populista, manipulador, paternalista, irresponsável, fascista, e outros epítetos pejorativos. No entanto, os direitos trabalhistas e previdenciários, embora tivessem origem em um período anterior, foram significativamente ampliados durante os 15 anos do governo Vargas. E a política pública de industrialização, que indiretamente também promoveu inclusão, foi oficialmente deflagrada nesse período e durou por cerca de 50 anos e com muito sucesso, até o início dos anos 1980.

Infelizmente, em 1982/83, o governo militar assinou várias cartas de intenção com o FMI, e o neoliberalismo começou a penetrar na burocracia federal. Claro que houve uma transição pró-democracia, com orientações que não eram neoliberais logo em seguida, mas aquele germe do neoliberalismo já havia se instalado na burocracia federal, a partir dessas cartas de intenção com o FMI. Posteriormente, como sabemos, esse neoliberalismo seria adotado como mote de governo nos anos 1990, direcionando o País para uma via algo diferente daquela apontada pela Constituição de 1988.

Rubens Goyatá:

E esses governos criticavam o Direito do Trabalho em 1990. Aquela conversa: é uma velharia fascista, impede o desenvolvimento, impede a criação de empregos…

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Sem dúvida, infelizmente. Por exemplo, o governo Collor criou uma comissão, como eu cito no livro, para reavaliar a CLT e a legislação trabalhista. Essa comissão apresentou seu resultado sugerindo que a CLT fosse substituída por uma lei com apenas 20 artigos, enquanto a CLT possui 922. A proposta era que tudo fosse remetido à negociação coletiva. Felizmente, o governante da época perdeu prestígio e foi alvo de impeachment por razões outras, como sabemos, devido a infrações ou crimes cometidos durante o seu governo. Ele até recebeu uma condenação por inelegibilidade de cerca de oito anos na época. Essa foi uma sorte para o País, pois imagine se essa proposta extremamente neoliberal tivesse sido implementada em um país como o nosso, que está entre os países capitalistas mais ricos e desenvolvidos, embora sendo um dos mais desiguais. Desde muito tempo sabemos que não cabe dizer que o Brasil seja um país pobre; o Brasil, na verdade, é um país fundamentalmente desigual e injusto.

Rubens Goyatá:

Esse projeto, de certa forma, voltou um pouco com a reforma trabalhista de 2017.

Ministro Maurício Godinho Delgado:

A reforma de 2017 gerou um diploma jurídico claramente extremista. Evidente que há um ou outro ponto dentro da Lei n. 13.467/2017 que é razoável e passa por um crivo técnico-jurídico. Por exemplo, o trabalhador a tempo parcial, que tem uma jornada de quatro a cinco horas, ele tinha uma tabela de férias extremamente modesta, podendo chegar a somente sete dias por ano. Esse prazo exíguo não restaura as energias de ninguém. Tal anomalia foi corrigida pela reforma, que aplicou a este contrato específico a tabela normal de férias, independentemente da jornada do trabalhador. Também é adequada, é claro, a regra proibitiva do início das férias no período de dois dias que antecede feriado ou o dia do descanso semanal remunerado. Ou seja, o diploma legal pode ter um ou outro preceito de boa qualidade, mas cerca de 90% dos seus dispositivos – e nós já estudamos essa lei com o máximo de cuidado e minúcia – são de exclusão social, tanto na seara do Direito Individual do Trabalho, como na seara do Direito Coletivo do Trabalho, sem contar as restrições introduzidas também no Direito Processual do Trabalho. Trata-se de uma lei de óbvia precarização trabalhista e de forte viés antissindical.

No tocante ao segmento do Direito Coletivo do Trabalho, há vários aspectos graves no diploma legal. Por exemplo, a exclusão abrupta do financiamento sindical provindo dos anos 1940, sem se regular, de imediato, a contribuição negocial ou assistencial, vinculada à negociação coletiva trabalhista. Mais do que isso, a lei retirou uma série de atribuições relevantes do sindicato em sua atuação e representação dos trabalhadores; ela também transformou a negociação coletiva trabalhista em um potencial massacre de direitos trabalhistas, induzindo as entidades sindicais a cumprirem papel totalmente estranho às suas funções históricas e mais importantes, normalmente voltadas à defesa das pessoas que vivem do trabalho e são seus representados; ela ampliou ainda mais os poderes do empregador no âmbito das relações laborais, seja o poder de atuação unilateral, seja o poder de atuação prevalente nas relações contratuais bilaterais; ela trouxe, além disso, penalizações e riscos crescentes para a atuação judicial dos sindicatos.

No conjunto, ressalvadas algumas regras pontuais, o fato é que a reforma trabalhista foi bastante antissocial.

Rubens Goyatá:

Como o senhor vê a possibilidade de eventualmente uma reversão?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Eu vejo que todos nós temos de manter o otimismo, senão nós desistimos da vida. O pessimismo não é uma boa postura individual e coletiva, ele, no fundo, não leva a nada. Temos que ter um espírito crítico, evidentemente, mas também temos de preservar o otimismo, embora saibamos que estamos vivendo uma conjuntura muito difícil, com enormes dificuldades no Parlamento do Brasil, as quais obstam grandes alterações, mudanças e aperfeiçoamentos. De toda maneira, a recente Lei n. 14.611, de julho de 2023, que trata de critérios promocionais para a efetivação da igualdade salarial entre mulheres e homens, entre outros aspectos, desponta como um diploma legal muito interessante, tendo sido elaborado com muito esmero. A nova lei ataca esse problema da desigualdade que a mulher sofre a partir de três vertentes: uma vertente bilateral ou individual, própria do Direito Individual e do Direito Coletivo do Trabalho; um conjunto de diretrizes e comandos aos empregadores no sentido de que não pratique condutas de discriminação; além disso, um conjunto de informações e parâmetros estatísticos que devem ser disponibilizados pelas empresas com relação a esse tópico, sob a atuação fiscalizatória do Ministério Trabalho e Emprego. É claro que o Ministério Público do Trabalho também pode atuar nesse campo, como cabe à sua função intrínseca. Portanto, entendo que se trata de uma lei muito bem construída, devendo apresentar resultados positivos nos próximos anos, se for realmente efetivada. Entretanto todos temos conhecimento das dificuldades que o novo governo progressista encontra no Congresso Nacional para realizar grandes modificações no arcabouço jurídico regressivo e antissocial implementado desde 2016/17.

De todo modo, seria também muito importante um avanço na questão sindical, uma vez que isso já traria novo fôlego para a abertura de uma nova fase de reconquista de direitos. A decisão do Supremo, no segundo semestre de 2023, decidindo imprimir nova redação ao Tema 935 de repercussão geral e superando a jurisprudência do próprio STF e do TST no sentido de que era inconstitucional a contribuição assistencial dos trabalhadores não associados, foi realmente um grande avanço, pois pode recuperar o custeio econômico e financeiro de parte significativa das entidades sindicais, ou seja, aquelas entidades que realizam a negociação coletiva trabalhista. Porém, mesmo aqui, alguns problemas sérios ainda se apresentam, dado que se mantem o debate sobre o direito de oposição dos trabalhadores não filiados. Tal curiosa prerrogativa (direito de oposição dos não associados), além de ensejar larga pletora de atos antissindicais no plano da sociedade civil, pode também se tornar uma válvula de escape esvaziadora de todo o avanço conseguido por essa mudança jurisprudencial. Vamos aguardar, o assunto ainda está em aberto, a jurisprudência ainda está amadurecendo. O próprio Supremo Tribunal Federal tem alguns embargos de declaração para examinar, inclusive tratando a esse respeito.

Rubens Goyatá:

Queria trazer aqui pra nossa conversa a questão das novas tecnologias, o impacto disso o mundo do trabalho, também no próprio Judiciário. Como o senhor vê essas novas tecnologias, o trabalho por plataforma, o uso de algoritmos, da Inteligência Artificial?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Esse é um tema bastante interessante. Em primeiro lugar, não podemos adotar uma postura contrária aos avanços tecnológicos. Tais avanços são uma característica muito clara do capitalismo, que já passou por quatro grandes revoluções tecnológicas, sendo que estamos vivendo a quarta. A presente revolução é, na verdade, um aprofundamento da terceira revolução tecnológica do sistema capitalista.

Revoluções tecnológicas sempre trazem mudanças nas relações sociais, sendo que, em alguns setores, essas mudanças são mais profundas e, em outros, menos substanciais. No caso atual, essa forma de atuação das empresas capitalistas por meio de plataformas digitais é realmente bastante inovadora, sem dúvida alguma, sob o ponto de vista estrito da tecnologia adotada. Para esse tipo de organização do sistema empresarial, antes não havia tecnologia muito avançada, nem um mecanismo tão generalizado como o sistema computadorizado dos telefones celulares e os respectivos algoritimos. Hoje, grande parte da população possui um aparelho celular, sendo que, por meio dele, realiza-se uma conexão entre o trabalhador e a empresa que organiza e administra esse tipo de ferramenta. Sem dúvida, isso representa uma novidade importante, concentrada na utilização dessa tecnologia para estruturar o sistema empresarial e o próprio trabalho humano.

No entanto, em relação à tecnologia em geral, exemplos anteriores no sistema capitalista mostram que a ordem jurídica não pode ser apenas uma ratificadora das decisões empresariais. No capitalismo liberal, desde o século XVIII, entendia-se que a norma jurídica não deveria interferir no contrato de trabalho, tanto em seu sentido amplo quanto estrito. Ou seja, não caberia à ordem jurídica interferir nas relações econômicas e sociais de trabalho. Porém esse pensamento é mesmo muito anacrônico, bastante ultrapassado. Com todo respeito, se não houver intervenção da ordem jurídica nas questões econômicas e sociais, podemos ter uma situação de selvageria e profunda precarização na sociedade.]

Vou apresentar um exemplo situado fora do Direito do Trabalho, mas bem ilustrativo: trata-se de um caso interessante que tem sido divulgado pela internet, televisões e outras publicações, envolvendo uma cidade superdesenvolvida de um país superdesenvolvido, que é Londres. Especuladores do mundo inteiro, quando querem adquirir uma substancial reserva de valor, além dos paraísos fiscais, compram imóveis no Reino Unido, compram prédios inteiros e os deixam fechados, sem se preocupar com o aluguel dos imóveis à população, pois o objetivo desses investidores é estritamente aportar em uma reserva de valor. Essa é uma estratégia de bilionários de várias partes do mundo, não de pessoas comuns; porém, com isso, o direito à moradia dos próprios britânicos está sendo prejudicado e negligenciado É óbvio que tal distorção tem de sofrer um freio ou ajuste pela ordem jurídica, em face de seu mais completo caráter antissocial.

Outro exemplo, também situado fora do Direito do Trabalho e envolvendo aspectos das novas tecnologias. Trata-se daquele vinculado aos sistemas de contratações fracionadas, temporárias e internacionais de ocupação de imóveis, como os propiciados pela empresa AirBnB e outras plataformas semelhantes de aluguel de curto período; ora, esses sistemas de contratações via internet tornaram-se muito mais vantajosos e rentáveis, para os proprietários de imóveis, do que a tradição de aluguéis tradicionais e de mais longo prazo. Porém o fato é que, em decorrência desse novo sistema telemático, as empresas, famílias ou pessoas proprietárias tem retirado os seus imóveis do mercado de locação tradicional para a população, de maneira a os alugar para turistas do mundo inteiro. Como resultado disso, milhares de pessoas do país receptor dos usuários temporários de pousos ou moradias estão sendo excluídas; não só os efetivos imigrantes, mas também a classe média tradicional, na medida em que os aluguéis tradicionais tem se tornado caríssimos pela ausência de oferta de imóveis disponíveis.

Conforme se pode perceber, as duas dinâmicas e suas distorções se somam, com franco prejuízo à própria sociedade britânica (sem contar que o mesmo fenômeno pode ocorrer, mesmo que em menor grau, em outras grandes cidades). Ora, como a Grã-Bretanha segue o neoliberalismo há muito tempo – uma ideologia que Margaret Thatcher deixou cravada no país e que o está destruindo -, os governantes não tomam atitudes, não agem, não criam normas corretivas a respeito das distorções despontadas. A ausência da atuação normativa estatal empobrece e avilta grande parte da população, fazendo decair a economia e gerando problemas sociais severos. Então, como se sabe, a atitude necessária é regular o assunto, de modo a ampliar a oferta de imóveis para a clássica locação residencial, ainda muito utilizada por amplos setores populacionais. Esses dois exemplos combinados, que atuam negativamente em metrópoles super desenvolvidas, ilustram bem como o Direito, a ordem jurídica deve cumprir um papel civilizatório, ao invés de apenas, irresponsavelmente, chancelar o livre jogo do mercado e dos interesses econômicos.

Infelizmente, o pensamento neoliberal considera tudo isso muito normal, inevitável, algo que não pode ser alterado. Contudo o pensamento de um Estado de Bem-estar Social, um Estado efetivamente democrático, que prioriza a inclusão dos seres humanos, ao invés de somente as prioridades do poder econômico, deve encontrar formas de concretizar algum tipo de garantia para a população e fazer com que o poder econômico contribua socialmente para as instituições e as dinâmicas que atendam à população em geral.

Voltando o foco para as plataformas digitais e o universo do trabalho e dos trabalhadores, tais organizações e mecanismos tecnológicos não apresentam solução para a questão previdenciária, para a saúde dos trabalhadores, para a cidadania multidimensional do ser humano, entre outros aspectos. Sufragar um sistema de superexploração da mão de obra, de extenuação do trabalho dos seres humanos, de solapamento do orçamento público garantidor das políticas sociais, entre outros aspectos, não parece um caminho racional de busca de desenvolvimento socioeconômico equilibrado e justo, com cidadania e bem-estar. O Estado e as políticas públicas não podem simplesmente olhar estupefatos e inertes para as inovações tecnológicas, porém realizar os ajustes necessários a fim de que não produzam um desastre socioeconômico nas realidades humanas envolvidas.

Além de tudo, é necessário insistir que os direitos e garantias trabalhistas permitem ao ser humano fazer algum planejamento econômico de maneira mais favorável, enquanto essas relações informais desreguladas deixam a pessoa em um limbo jurídico, organizacional e, até mesmo, existencial, sem nenhuma possibilidade de qualquer previsão e controle sobre a sua vida profissional e econômica. Essa dinâmica precarizada e selvagem mostra-se extremamente perigosa e arriscada para o ser humano. Não estou insistindo que a única solução jurídica seja a relação de emprego e seu específico manto normativo; porém se torna necessário regular-se tais relações, especialmente as mais precarizadoras, de maneira a diminuir ou superar os seus mecanismos antissociais.

A verdade é que estamos vivendo, aqui na América Latina, e inclusive no Brasil desde 2016/17, uma fase de forte influência do neoliberalismo, o qual sempre reverbera que a tecnologia supera tudo, inclusive as conquistas humanistas e sociais da ordem jurídica. Por isso, é necessário encontrar um formato jurídico e organizacional que traga razoável proteção ao ser humano e que também o insira em um sistema social de proteção, sistema que tem de ter suporte e lastro financeiros, envolvendo também as empresas, mesmo as de tecnologia, todas tendo de assumir a sua responsabilidade social. A ideia de empresa sem responsabilidade social é, de fato, muito antiga, datada dos séculos XVIII e XIX. Contudo trata-se de ideia superada pelo Constitucionalismo Social do início do século XX e pelo Constitucionalismo Humanista, Social e Democrático de meados do século XX, em diante. Este novo e mais recente paradigma do constitucionalismo, claramente inserido na Constituição de 1988, rejeita esse tipo de ideia excludente e precarizadora, por ser socialmente irresponsável e humanamente precarizadora. Conforme se sabe, o tema está em aberto, e esperamos que tanto o legislador quanto a jurisprudência encontrem uma solução que priorize a proteção das pessoas que vivem do trabalho e o próprio sistema protetivo criado pela ordem jurídica, inclusive o previdenciário. Não existe efetiva democracia multidimensional sem a inclusão socioeconômica das pessoas que vivem de seu trabalho e o ofertam, por meio de empresas tecnológicas, a outras empresas ou à sociedade em geral, mas sem o zelo pelo sistema de proteção social organizado para o conjunto da população. Parece-me que ainda estamos trabalhando em hipóteses e esperamos que surjam avanços nesse tema em nosso país.

Rubens Goyatá:

E o STF em relação a essa questão da competência da Justiça?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

De fato, nós temos tido principalmente decisões monocráticas a esse respeito, uma vez que o plenário do STF ainda não se decidiu com relação a esse tema. É muito importante ressaltar que são decisões monocráticas, porque às vezes a mídia divulga de uma maneira muito unilateral as coisas. Tecnicamente, o plenário do Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu sobre o assunto; aliás, inclusive com relação à terceirização, o STF, por seu plenário, firmou ser possível existir diversas formas de organização do trabalho, mas o próprio plenário da Corte Máxima, nas mesmas decisões, ressaltou que as fraudes não estão autorizadas. Ora, os dados efetivos da realidade somente podem ser exaustivamente investigados e examinados pela instância ordinária da Justiça do Trabalho, conforme disposto expressamente pelo artigo 114, inciso 1, da Constituição, que fala da competência da Justiça do Trabalho no sentido de analisar a relação do trabalho em sentido amplo, ao invés de apenas a relação de emprego. Nesta linha, sempre respeitada alguma exceção pontual (como a que envolve as pessoas jurídicas de Direito Público, por exemplo, segundo o STF), caberia à Justiça do Trabalho examinar se há fraude nesses casos concretos existentes na sociedade civil.

De toda maneira, nem tudo é terceirização, nem todas as relações são relações de terceirização; às vezes, essas relações socioeconômicas de trabalho são efetivamente diretas. Onde está a terceirização do trabalhador que faz o transporte de pessoas ou de coisas em seu veículo, sua moto ou em sua bicicleta à população mediante uma relação sofisticada e direta, embora de caráter digital, que realiza com a empresa de aplicativo computadorizado? Não haveria aí exatamente uma terceirização, porém uma relação direta, tanto que o profissional tem que preencher uma ficha pela internet, via telefone celular, inserindo o seu CPF, a foto da sua carteira de identidade, a foto da sua carteira de motorista, o seu endereço residencial, etc., além de ser, de modo cuidadoso e minucioso, cotidianamente fiscalizado por intermédio dos instrumentos digitais envolvidos nessa relação socioeconômica de trabalho. Porém ainda estamos diante de um debate sobre o assunto em nosso país.

Rubens Goyatá:

Em relação às tecnologias, como é que o senhor vê o impacto delas, por exemplo da Inteligência Artificial? Recentemente o ministro Luiz Roberto Barroso falou sobre a inteligência artificial, de que brevemente poderemos ter as primeiras versões de sentenças judiciais escritas por Inteligência Artificial. Como é que o senhor vê o impacto disso no processo judicial, e como nós estamos falando de um sindicato dos servidores, e o impacto dela em geral alguns empregos?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Como tudo que apresenta relação com a tecnologia, vejo com muito otimismo a existência de avanços tecnológicos, conforme já disse. Porém entendo que o assunto tem de ser visto também com amplo e aberto espírito crítico, para que os sistemas de poder e de prestação de serviços à população não se tornem meros instrumentos de quem detém, em nossa sociedade, a mais diversificada e fulgurante força, ou seja, o poder econômico.

No plano do Judiciário, a tecnologia nos tem ajudado muito, tem contribuído muito para o nosso trabalho, a nossa produtividade e a ampliação do acesso ao sistema de justiça pela população. A microcomputação e os seus inúmeros e diversificados instrumentos chegaram ao Judiciário, no Brasil, em torno dos anos de 1990, trazendo enormes vantagens e avanços para o nosso trabalho e de todo o sistema de justiça nestas últimas quatro décadas. A computação, com os seus múltiplos mecanismos, além dos diversos meios telemáticos de comunicação, tudo nos ajudou muito, tornando mais ágil e eficiente a lavratura de despachos, sentenças, acórdãos e, até mesmo, os julgamentos. Iguais avanços atingiram toda a comunidade jurídica, sejam os professores, os advogados, os procuradores, os servidores de todo o sistema, em suma, toda a comunidade jurídica. Os sistemas de pesquisas jurisprudenciais, de pesquisas normativas, inclusive envolvendo documentos normativos de caráter internacional, de investigações de dados e informações estatísticas e de outras naturezas, bem como o contato com as diversas instâncias e instituições do sistema judicial do País, tudo foi amplamente influenciado e aperfeiçoado pelos avanços tecnológicos de natureza digital e telemática, inclusive a denominada inteligência artificial. O fato é que os diversos programas digitais e telemáticos absorvidos pelo Judiciário tem contribuído de maneira fantástica para o avanços do sistema de justiça no País.

Contudo, uma vez mais, não podemos perder de vista o papel fundamental inerente à pessoa humana em toda essa estrutura e dinâmica organizacionais. A pessoa humana continua fundamental. Tais atividades, se feitas sem o tirocínio e a atenção da pessoa humana, quer o magistrado, quer o servidor – que é um auxiliar imprescindível do magistrado e de todo o sistema -, podem conduzir a situações de fechamento da jurisdição à população, porque a inteligência artificial vai trabalhar com modelos e esses modelos da IA tenderão a ser essencialmente formais, com padrões que podem afetar o amplo e democrático acesso à justiça. Vejam a dinâmica da chamada “jurimetria”: trata-se de estratégia fundada em amplo uso da computação e seus algoritimos, que pode influenciar severamente as tendências da própria jurisprudência.

Outro exemplo interessante: o próprio CNJ aprovou o julgamento com perspectiva de gênero e, mais recentemente, o julgamento com perspectiva de gênero e raça – decisões muito importantes para o aperfeiçoamento e democratização do sistema judicial. Contudo, se não houver um foco um pouco mais diferenciado com relação a esses temas, provavelmente não se vai enxergar, na medida necessária, a discriminação. O lado avaliador do ser humano continua a ser fundamental na nossa atividade.

Evidentemente que, para assuntos e atividades mais simples, bem objetivas, os programas de algorritimos e/ou IA podem ser instrumentais, sem dúvida.
Em suma, não há dúvida de que é muito importante a tecnologia no nosso trabalho, assim como ela se mostra muito importante também em outras áreas profissionais. Observe-se, por exemplo, na medicina contemporânea, onde a robótica contribui muito para a realização de cirurgias com maior segurança tanto para o médico quanto para o paciente – mas nada afasta o papel relevante do cirurgião e de uma competente equipe médica. Ou seja, todos esses avanços tecnológicos não afastam o decisivo e estratégico papel que tem de ter o ser humano nessas searas temáticas. Não há dúvida de que a tecnologia é algo fantástico, embora o Poder Judiciário tenha de ter o cuidado de não delegar a função decisória central ou exagerar na aplicação da Inteligência Artificial, de maneira a incorporar padrões que são próprios do pensamento dominante.

Rubens Goyatá:

Ministro, sobre essa questão do número de processos e da gestão do Judiciário tem havido uma pressão muito grande, nos magistrados e também nos servidores, em relação à questão das metas de cumprimento, de julgamento. Reclama- se disso porque uma preocupação excessiva com as metas não estaria agindo nas causas da hiper judicialização, na quantidade enormes de processo, nas dificuldades de se chegar, no caso da Justiça Trabalhista, na execução final da decisão transitada em julgado. Como é que o senhor vê essa questão de gestão do Judiciário frente a essa quantidade muito grande de processos, das metas?

Ministro Maurício Godinho Delgado:

Com relação a essa questão, eu acho que temos de enfrentar o conhecido dilema existente em várias situações da vida, das organizações e das comunidades: isto é, encontrar um bom equilíbrio entre valores e objetivos diversos. Penso que o sistema judicial tem de estruturar e fixar metas diversificadas, porque senão ele perde o caráter sistêmico de nossa atuação e a eficiência do sistema fica muito ao sabor da compreensão meramente individual dos profissionais e áreas envolvidos. Afinal, todos nós integramos um Sistema Nacional, ainda que dividido entre os estados federados e a União. Nessa linha, penso que a criação do CNJ, pela EC n. 45, de 2004, foi um grande avanço, para o qual a Justiça do Trabalho, inclusive, contribuiu muito, com a nossa associação de magistrados, a Anamatra. Afinal nós somos uma república e uma federação, ambas situadas em um país de dimensões continentais; isso significa que se torna mesmo necessário que haja uma certa racionalização na atividade e trabalho das instituições e pessoas envolvidas. E o CNJ trouxe grandes contribuições nessa linha.

De toda maneira, a questão das metas tem que ser vista igualmente com equilíbrio, ou seja, não podem ser metas que tornem a vida péssima, que tornem o ambiente de trabalho insalubre e que tornem a dinâmica e o contexto cotidianos inaceitáveis, superdesgastantes, estressantes etc.

De igual modo, o Poder Judiciário não deve colocar os números acima da qualidade do exercício da atividade judicial, sob pena de sufragar distorções no cumprimento de seus objetivos.

Em síntese, creio que se trata, essencialmente, de uma questão de equilíbrio, como tudo na vida aliás.

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