Destruição Social: a missão

Compartilhe

Por Rubens Goyatá Campante – Servidor do TRT-3, Doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade do autor, não sendo esta necessariamente a opinião da diretoria do SITRAEMG

O governo Temer e sua base de apoio no Congresso Nacional têm dois objetivos. O primeiro e mais crucial é salvar a própria pele, diante das investigações e das denúncias de corrupção. O segundo objetivo deriva, em parte, de interesses e  ideologias próprias, mas é, principalmente, o meio de garantir o primeiro: promover um ataque rápido, profundo e generalizado aos direitos sociais dos brasileiros. Esse ataque é o cumprimento de uma missão que lhes foi passada pelos donos do poder, em suas vertentes ideológica (a grande mídia), econômica (o grande capital e o sistema financeiro, com seu “sacrossanto” mercado, de cujos humores dependeriam nossa salvação ou danação, dizem seus serviçais) e político-institucional (o PSDB e a cúpula do Judiciário).

O objetivo dos donos do poder, por sua vez, é que o Estado funcione e beneficie a eles, e somente a eles. Para isso, a menina dos olhos é a reforma da Previdência. A Previdência é o segundo maior gasto do Estado (a mídia diz que é o principal, mas mente, como usual, o maior gasto é com a dívida pública) e  movimenta um volume de recursos imenso, que os grupos de previdência privada e o mercado financeiro salivam para acessar. Como ela passou a enfrentar resistências, o governo Temer encaminhou outra proposta de reforma, a trabalhista, costurada por entidades patronais, e que conseguiu ser pior que a que vinha sendo discutida. Manobrou-se, ao estilo do nada saudoso Eduardo Cunha, para que fosse votada em regime de urgência, rapidamente, sem a mínima apresentação e debate com a sociedade.

A proposta de reforma trabalhista retrocede o país à época em que as relações de trabalho eram tidas como relações comerciais de compra e venda: alguém entrega um bem a outro, que lhe volta dinheiro, o negócio está feito e acabado. O trabalhador presta o serviço, o outro lhe paga, e fim – férias, 13º, jornada máxima de trabalho, previdência social e tantos outros direitos decorrentes dessa relação não existirão mais, o sonho dourado dos patrões! A relação comercial de compra e venda parte da simetria de condições entre os contratantes que, com isso, têm liberdade plena de realizar ou não o negócio – eu vendo meu carro se eu quiser, quando eu quiser, para quem eu quiser, do jeito que eu quiser, por razões que só a mim interessam. O pressuposto do Direito do Trabalho é que, na relação de trabalho, o obreiro está em condições mais frágeis, e a simetria e a liberdade não existem, o trabalhador não pode vender seu trabalho se quiser, quando quiser, para quem quiser, do jeito e pelas razões que quiser, pelo simples e incontornável fato de que é obrigado a fazê-lo por questão de sobrevivência. Óbvio. Mas os donos do poder recusam-se a admitir.

O demolidor ataque aos direitos laborais da reforma trabalhista de Temer e dos empresários traz ainda dois outros argumentos ideológicos e uma motivação real.

O primeiro argumento: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) está obsoleta, uma lei de 1943, de inspiração fascista, que é urgente mudar e modernizar.

Mentira. A CLT não está obsoleta. Consolidação, e não Código legal, a CLT reuniu as diversas leis do trabalho então existentes e instituiu algumas novas,  buscando, desde o início, coerência e sistematicidade em seu conjunto, mas nunca a pretensão de rigidez e quase plenitude de um Código. A regulação do trabalho no Brasil, portanto, esteve permanentemente aberta à renovação, foi se atualizando e se modernizando, por normas ordinárias e constitucionais, e por uma jurisprudência particularmente ativa. A CLT amadureceu bem, não se esclerosou. O que não significa que seja isenta de defeitos.

Seus inimigos exageram e distorcem o significado de seu principal defeito. Julgam-na, em sua totalidade, por ele, e escondem suas qualidades. O defeito é o caráter autoritário do direito sindical. A distorção e exagero é chamar a CLT de fascista por causa disso. A prova para essa acusação: alguns trechos da Carta del Lavoro, a lei trabalhista de Mussolini, copiados na CLT. Copiar trechos de outras legislações é algo banal. Acusado de “plágio político e jurídico”, por transcrever trechos da Constituição norte-americana no projeto de Constituição da República de 1889, Rui Barbosa ironizou: “conhecemos o  plágio literário, o plágio científico, o plágio artístico, o plágio industrial. Mas o plágio político!? Todas as reformas prestáveis são cópias ou adaptações da experiência efetuada noutros tempos, ou por outros povos”. Pode-se argumentar: mas precisava copiar justamente trechos da lei fascista? Esclareça-se, então, que, se a CLT foi autoritária no direito coletivo do trabalho, foi e é francamente progressista na normatização de direitos individuais aos trabalhadores e nas suas leis processuais, simplificadas e acessíveis – que influenciariam, mais tarde, o próprio direito do consumidor. Algo que não aconteceu, definitivamente, no fascismo, que foi reacionário e autoritário em todos os sentidos, que suprimiu diversos direitos dos trabalhadores e dificultou seu acesso à Justiça – o mesmo, aliás, que esta reforma trabalhista faz. Porque não chamá-la de fascista, então?

Na verdade, o caráter ambíguo da CLT – progressista no âmbito individual e processual, mas com elementos autoritários no âmbito coletivo – não veio do fascismo, mas da tradição política na qual Getúlio Vargas, seu grande arquiteto, formou-se, o positivismo gaúcho – na verdade gaúcho-platino, pois foi uma tendência político-ideológica que se estendeu, em fins do século XIX e começo do século XX, pela Argentina, Uruguai, Paraguai, sul do Brasil, e até mesmo Chile. Era uma tradição estatista, ao mesmo tempo anti-liberal e anti-esquerdista, e tinha facetas sociais e econômicas avançadas: a inclusão social e as leis trabalhistas, o estímulo à industrialização e à modernização econômica, o cuidado com os serviços públicos e a educação. O contraponto era o autoritarismo político: centralismo, métodos de disputa truculentos, desprezo pela liberdade individual, pelo  voto e pela liberdade de imprensa.

E as influências na construção da legislação trabalhista não se limitaram a esse peculiar positivismo, mas incluíram aportes de teorias corporativistas (nem todas conjugadas ao fascismo), das doutrinas sociais católicas (fundamentais na constituição, em 1919, da OIT) e até do chamado realismo jurídico norte-americano, proponente de um direito pragmático e antiformalista, no qual Roosevelt se sustentou para introduzir seu reformismo social do New Deal. A CLT originou-se de todas essas heranças e conjunturas. Reduzi-la a fascismo é má-fé ou ignorância.

Permanece, porém, o problema da estrutura sindical, que necessita de mudanças. Mas a extinção da contribuição sindical obrigatória e do sindicato único, se não efetivada junto com medidas de garantia e fortalecimento do sindicalismo, agravará o desamparo dos trabalhadores. As mais importantes dessas medidas: 1) substituição da unicidade pelo princípio do sindicato mais representativo – haveria vários sindicatos, mas somente o mais representativo – segundo parâmetros legais e fiscalizados – negociaria em nome de sua categoria; 2) a substituição, sem prejuízo de outras contribuições voluntárias, da contribuição compulsória pela contribuição por negociação coletiva, cobrada quando se conseguisse, via negociação coletiva, vantagens à categoria; 3) o estabelecimento da representação sindical nos locais de trabalho, não só para o diálogo com os patrões, mas para a fiscalização do cumprimento das normas legais e negociadas; 4) a proibição de condutas antissindicais por parte de empregadores.  Sem essas e outras providências, e instituindo-se abruptamente o fim da contribuição sindical e a prevalência absoluta do negociado sobre o legislado sem um patamar mínimo legal, os trabalhadores estarão na mais absoluta desvantagem. As entidades patronais dizem que é hora de acabar com o corporativismo e instituir a meritocracia, e salientam que também perderão dinheiro com o fim da contribuição compulsória – só não dizem, como lembrou Maria Cristina Fernandes em artigo no Valor Econômico, que 90% de seus recursos não vem dessas contribuições, mas do sistema S (SESC, SENAC, SENAI, SESI e outros), que continuará a ser cobrado.

Regulação social e democracia

O segundo argumento em defesa da reforma trabalhista é mais patético ainda: ela criará empregos e ajudará na recuperação econômica do pais, será boa para os trabalhadores, bom para todos! A suposição de que o desemprego diminua quando direitos sociais sejam retirados ou enfraquecidos não encontra o mínimo respaldo nos fatos ou em qualquer teoria séria. O que cria empregos é o crescimento econômico, com aumento do investimento e do consumo. Até 2014, quando a economia estava aquecida, o desemprego era mínimo, mesmo com a plena vigência dessa legislação “obsoleta”, que “criava insegurança jurídica” para o empregador contratar. Esse tipo de discurso é recorrente na classe dominante brasileira, usado para negar, postergar ou enfraquecer direitos populares: “não fazemos isso porque queremos, mas porque é necessário, pois somos responsáveis, e não demagogos, é um sacrifício feito agora que no fim aproveitará a todos”. Um grande engodo.

Na verdade, a motivação real da reforma é que a maioria dos grandes empresários quer contornar a crise à custa do lado mais fraco, os trabalhadores. E  entraram em guerra contra eles, embora não o declarem – claro, atinge-se mais profundamente o adversário quando este mal tem noção de que é golpeado e de quem o golpeia. É fundamental que nós, povo e trabalhadores, entendamos isto, é o primeiro e essencial passo para nos defendermos melhor: estamos sendo deliberadamente atacados, e por agressores que não o admitem!

E o país volta à sua triste sina histórica, da qual recentemente ensaiou sair, mas, por razões diversas, falhou mais uma vez: o de ser uma sociedade com uma economia particularmente selvagem e excludente, no qual o ganho se dá pela exploração bruta, desenfreada, do trabalho e dos recursos naturais, e não por incrementos de produtividade, racionalização, convergência social  e inovação tecnológica. Um padrão eternamente imediatista e, no limite, irracional, obviamente péssimo para o povo, mas, a longo prazo, ruim até para a oligarquia.

Destruição social, esta é a missão de um presidente usurpador, que bate recordes de impopularidade, e do pior Congresso Nacional de nossa história – fulminar a regulação trabalhista e, assim, atingir a democracia.  Pois a sorte da regulação trabalhista liga-se à sorte da democracia, e vice-versa. A perspectiva de ambas está sombria. Cabe a nós, a maioria, superar nossa fragmentação subordinadora e resistir.

Compartilhe

Veja também

Pessoas que acessaram este conteúdo também estão vendo

Busca

Notícias por Data

Por Data

Notícias por Categorias

Categorias

Postagens recentes

Nuvem de Tags