Apesar de as mulheres representarem 52% da população com deficiência no Brasil, de cada 10 pessoas com deficiências empregadas, oito são homens e apenas duas são do sexo feminino.
Os dados são da Relação Anual de Informações Sociais, de 2022, e confirmam que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres PCD´s, no mercado de trabalho, são ainda maiores do que o restante da população feminina.
Mesmo atuando em diversos postos, áreas e frentes, as mulheres com deficiência, quando têm oportunidades de inserção profissional, enfrentam os efeitos do chamado capacitismo, visão de grande parte da sociedade de que as pessoas com deficiência não são aptas a exercerem certas atividades e nem a gerir suas próprias vidas.
No mês da mulher, a reportagem do Sitraemg conversou com servidoras com deficiência ou mães de filhos com deficiência. Elas relatam um cotidiano de dificuldades e batalhas para a garantia de direitos e para a validação da deficiência.
Especificidades não são privilégios
Lorena Ferreira Fraga, com deficiência visual, técnica judiciária do TRE/MG desde julho de 2017, hoje lotada em Montes Claros, afirma que já sentiu o capacitismo na sociedade, mas não com os colegas de tribunal.
“Como subestimam nossa capacidade, percebo que não raro surpreendo o outro por fazer coisas que um ser humano sem deficiência faz normalmente. Para essas pessoas, a deficiência é um fardo tão pesado que quase perguntam como a gente consegue ser feliz. Eu, por exemplo, sorrio muito. Ouço sempre algo muito parecido com: enquanto tem gente que reclama por besteira, você está aí sorrindo mesmo com tantas dificuldades. E penso que: talvez, se eu não tivesse deficiência, mas, sim, o problema daquela pessoa, eu também reclamaria, e pode ser que esse fato impactasse minha vida mais do que a deficiência”, conta bem-humorada.
Lorena acredita que a maioria dos tribunais cumpre a cota de PCDs definida por lei, no país, que é de, no mínimo, 5% do quadro de pessoal.
“Mas, após o ingresso no tribunal, para nós PCDs, há muita luta. No dia em que eu tomei posse no TRE, eu levei um requerimento impresso solicitando alguns recursos de acessibilidade para ser protocolado no tribunal e já começar sua tramitação, afinal eu iria para uma zona do interior e estaria sujeita a toda sorte de contextos inacessíveis. Fui orientada a protocolar esse requerimento quando chegasse ao cartório e sequer alguém teve curiosidade de lê-lo, a fim de verificar se seria realmente razoável me mandar, num primeiro momento, para uma zona tão pequena, já que ainda não tinha nenhum recurso de acessibilidade. Em contraponto, meu irmão, também com deficiência visual, teve sua primeira lotação no TRE/PR numa zona da capital, para que lhe fosse garantido não só uma estrutura maior de pessoal no trabalho, como também uma cidade mais bem adaptada à sua condição, em vez de ir para a zona do interior que lhe seria destinada caso não possuísse deficiência”.
Assim, após dois anos trabalhando na zona de Montalvânia, Lorena abriu um processo pedindo para ir para uma zona mais acessível, na busca por melhor condição de vida e de trabalho, inclusive em relação ao transporte.
“Na cidade onde eu estava lotada, não tinha taxi, Uber ou lotação, o que me levou a morar num kitinet para ficar mais perto do trabalho e de pontos comerciais imprescindíveis à sobrevivência, já que não posso dirigir. Além disso, por estar em uma equipe pequena, às vezes, eu tinha que fazer operações de RAE, o que, para mim, gerava muita ansiedade. Meu processo de remoção durou dois anos. Foi muito desgastante até fazer com que compreendessem o que estava em jogo. Com a mudança de local, consegui ter mais acessibilidade”, relata
Depois de um ano tentando, Lorena conseguiu ir para o teletrabalho com a manutenção de sua lotação em Montes Claros. “Essa demora se deu porque viram, em meu pedido de teletrabalho, uma oportunidade de me lotar, novamente, no cartório de Montalvânia, apesar de várias manifestações juntadas no processo de mudança de lotação alegando a importância, para a garantia da acessibilidade, de estar em uma zona com um maior número de servidores, além de o teletrabalho não ser obrigatório, o que implica na necessidade de manter minha lotação em Montes Claros para o caso de eu querer retornar ao trabalho presencial. Assim, foi necessário 1 ano para convencer os gestores a me concederem o teletrabalho pela zona de Montes Claros”.
“A maior barreira que senti no TRE Minas foi a atitudinal das pessoas responsáveis pela tomada de decisão, não em relação aos equipamentos e às tecnologias assistivas. Sempre que eu pedi algo fora do convencional, enfrentei fortes resistências; parecia um privilégio e não uma necessidade. Infelizmente, a impressão que ficou é que, na dúvida de como proceder, o órgão tende para a restrição de direitos,” avalia Lorena.
Servidora conta como diagnóstico de autismo e TDAH vem transformando a sua vida
Uma analista que foi diagnosticada, recentemente, com autismo e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), conta, aliviada, como compreender as suas especificidades melhora a sua vida.
Veja o relato da servidora, que se prepara para apresentar o laudo para a chefia direta, e, por isso, prefere não se identificar.
“Descobri o meu quadro de autismo e TDAH quando fui buscar ajuda para minha filha, que apresentava problemas de concentração e interação social. Com o diagnóstico dela, tive o meu.
Pouco depois, por circunstâncias consegui o teletrabalho.
Um ano em home office já mudou a minha vida completamente. Antes, a minha rotina no tribunal era difícil. Eu distraia fácil e tinha a sensação de não pertencer ao local. Também tinha dificuldade extrema em atender o público no balcão. Sempre chegava em casa exausta, mas, achava que aquilo era normal.
Por causa da minha dificuldade de comunicação, perdi muitas oportunidades. Sempre procurava uma mesa no canto e no fundo.
Por anos foi bem difícil sobreviver num ambiente que não era adaptado para mim. Quanto mais eu tentava me adaptar, pior era o meu desempenho.
Meu médico explica bem o que é ter autismo e TDAH: É como se as outras pessoas corressem livres e a gente com um elástico nos prendendo.
Para mim o diagnóstico foi libertador. Agora sei das dificuldades que tenho e do meu potencial. Me respeito mais e não me esforço para caber em qualquer lugar.
Estou há um ano como assistente de juiz. Estou numa função conhecida como sendo difícil e não estou tendo dificuldade. Recuperei a minha autoestima e estou aprendendo muito com o meu superior. Ele faz correções mínimas no meu trabalho e é muito bom ouvir que estou indo bem!
É muito importante estar num ambiente adequado. Não é frescura! Muitas pessoas não conseguem produzir e desenvolver todo o seu potencial no ambiente rotineiro do tribunal.
Depois disso até voltei até a estudar para concurso. Toda incompetência que achava que tinha era inadequação. Preciso de um ambiente adequado para atingir todo o meu potencial.
Se as instituições se abrissem para essas especificidades seriam muito beneficiadas. Saímos do mediano e isso beneficia a sociedade e a gente sente um enorme bem estar.
Além disso, as demandas diárias sobre as mulheres, aumentam a pressão. A sociedade precisa também ter um olhar mais sensível para as mães que, muitas vezes sozinhas, enfrentam a sobrecarga, sem nenhuma flexibilidade no ambiente de trabalho.
Mães de PCDs
Falta de auxílio do Estado e despreparo da sociedade são parte da realidade das famílias, sobretudo das mães de filhos PCDs.
Jaqueline Pereira, técnica do apoio judiciário do TRT, já tinha dois filhos biológicos quando adotou, há dez anos, a pequena Maria Vitória.
A criança tinha apenas três anos e necessitava de cuidados especiais em decorrência da paralisia cerebral.
“Em 2013, eu e meu companheiro (Toninho) decidimos adotar a Vivi, filha de uma sobrinha dele e que necessitava de cuidados”.
De lá para cá, Jaqueline e a família batalham para garantir os cuidados que a filha tetraplégica, traqueostomizada e que se alimenta por sonda e utiliza ventilação mecânica 24 horas.
“A sala de casa é praticamente uma CTI, com enfermeiros o tempo todo. Tive que alugar apartamento perto para o homeoffice. É uma vida complexa. Mas nunca me arrependi da escolha. Hoje saí do trabalho e fui comprar fronhas e comprei cada uma mais linda que a outra para a Vivi!”.
Jaqueline conta que aprendeu com a mãe a ter fé na vida. Um exemplo, que passou de geração para geração de mulheres e, hoje, lhe ajuda a superar dificuldades. “Tive, também, a referência das tias e das minhas irmãs”, conta.
“Todas nós, a exemplo da minha mãe, somos vencedoras e continuamos vencendo essas lutas”.
“Ser mulher ajuda. Mulher não desiste, a gente sabe. Devemos ter um DNA divino, que consegue estar em toda parte. Me sinto divina, por causa da disposição que tenho. Como estou chegando aos 60 anos, me cuido, faço musculação e, até pouco tempo, corrida. Mesmo quando estou doente, acordo e faço tudo o que precisa ser feito”.
Tudo para cuidar bem da Vivi, o que, para Jaqueline, não é um sacrifício, mas uma exemplo de “missão possível, quando se tem coragem e amor”.
Dificuldades para servidoras e para cuidadoras da pessoa com deficiência
A analista judiciária Wendelaine Cristina Correia de Andrade Oliveira divide o seu tempo entre o trabalho no TRE, os cuidados com a casa e o filho de 11 anos, portador de deficiência intelectual. Também dedica muito da sua energia e conhecimento, também, à luta por um mercado de trabalho mais inclusivo para mulheres com deficiência e cuidadoras de pessoas com deficiência.
Em seus estudos, a servidora constatou um abismo no cumprimento das cotas para as pessoas com deficiência ou reabilitadas no setor público em relação ao privado. “E não estamos falando apenas da contratação pela via do concurso público, o que poderia levar à falsa premissa de que se trata exclusivamente do fator meritocracia”.
“Quando se trata de mulheres com deficiência, o capacitismo que está embutido de forma consciente ou inconsciente nas práticas de contratação, é ainda mais presente. Aqui, há uma dupla vulnerabilidade, entre o fato de ser mulher e de ser mulher com deficiência”, acredita.
Os estudos do feminismo, acredita Wendelaine, contribuem para a mobilização em defesa dos direitos das pessoas com deficiência, já que, na compreensão mais moderna, a deficiência é uma forma complexa de opressão, semelhante a que ocorre com as mulheres.
A mulher com deficiência e a esquecida mãe ou cuidadora da pessoa com deficiência não enfrenta desafios apenas para conseguir uma vaga que a remunere nas mesmas condições que os homens. Enfrenta, também, preconceitos quanto a sua capacidade de entregar um bom trabalho.
“Como mãe de pessoa com deficiência e mulher trabalhadora, deixo esta reflexão para o Dia Internacional das Mulheres, para que a sociedade, munida de estatísticas e números, pense em instrumentos que incluam, de fato, as pessoas no mercado de trabalho, independentemente de gênero ou de qualquer outra condição,” desafia a servidora.
Minoria entre as minorias
Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2021, com 80 tribunais apenas 0,42% dos magistrados possuem deficiência e 1,97% dos servidores são PCDs.
Moisés Januário da Silva Almeida, representante do Sitraemg no Coletivo de Pessoas com Deficiência (PCD) da Fenajufe, ressalta que a ampliação do acesso de PCDs ao quadro de servidores do PJU é o principal desafio hoje.
“As entidades sindicais reivindicam alterações nas normas e resoluções, como o exame prévio para realizar a prova para a carreira da magistratura. Também é preciso ampliar o percentual de cotas nos concursos do Judiciário Federal”, defende Moisés Januário.
A maioria dos certames federais prevê, atualmente, apenas, 5% de reserva de vagas para PCDs, que é o mínimo previsto na legislação.
A coordenação do Sitraemg apoia esta mobilização nacional e em MInas Gerais.
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Assessoria de Comunicação
Sitraemg