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‘Existe demanda por grandes mudanças estruturais’, afirma cientista social da UFMG

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Os eventos sociais que tomam as ruas do país são tão singulares, e têm se transformado tão rapidamente, que desafiam até os analistas que, em tese, estariam mais treinados para fazer a leitura desse tipo de cenário. A professora Andréa Zhouri, do Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), lembra que pode ser arriscado buscar uma interpretação conclusiva sobre essa novidade, a partir de ferramentas analíticas conhecidas.

Feita a ressalva, ela acredita que as marchas são resultado de conjuntura que não é recente nem está circunscrita ao cenário nacional. Os protestos refletem ampla rejeição a um modelo social, político e econômico que resulta necessariamente em um desenvolvimento caracterizado pela desigualdade.

“Muitos políticos têm aviltado as instituições: é isso que põe em risco a democracia, não as manifestações”, afirma Andréa. Na entrevista abaixo, a professora destaca a importância de se “separar o joio do trigo”, construindo “estratégias para colocar na pauta política as mudanças mais profundas que a sociedade almeja”.

A partir do conceito de movimento social, que análise podemos fazer das manifestações recentes?
Estamos diante de um movimento centrado em protestos sem precedentes na história do Brasil. Por isso, tentar fazer uma análise dos acontecimentos, tendo por base apenas as ferramentas de interpretação e análise sobre movimentos sociais que já detínhamos, pode levar a equívocos. São ferramentas construídas a partir de outras conjunturas; podem ser insuficientes ou mesmo inadequadas para entendermos os protestos de hoje. Certo é que há algo de realmente novo acontecendo no país.

Mas o que já é possível dizer, em especial a partir da perspectiva da sociologia e da antropologia? Há como antecipar a direção que as manifestações vão tomar?
Se não dá para analisar completamente o que já ocorreu, ainda mais difícil é dizer para onde a marcha vai. Mas é justamente isso que torna o momento ainda mais instigante. De toda forma, algumas reflexões preliminares já podem ser feitas. Percebemos nas ruas um contingente de jovens que estava carente de política, desejoso de fazer política. Alguns grupos já vivenciavam a política em movimentos sociais, mas grande parte não a vivenciava, e agora está buscando formas de fazê-lo. Isso é louvável. Entretanto, é importante perceber que essas pessoas não reconhecem mais as instâncias tradicionais como o espaço exclusivo para praticarem a política. Falo dos partidos, por exemplo, de organizações tradicionais que protagonizavam o fazer político no Brasil. As pessoas que estão nas ruas pretendem algo novo e estão descobrindo as ruas como espaço público para exercer a sua cidadania; a rua e as redes sociais como espaços vivos e públicos de debate sobre a vida e a sociedade.

Que peso os movimentos sociais que já existiam exercem sobre essas manifestações?
Há bandeiras de movimentos sociais que já vêm, há algum tempo, debatendo as questões que agora chegaram ao centro da pauta. Um exemplo é o Comitê Popular dos Atingidos pela Copa 2014 (Copac), de Belo Horizonte, que questiona os deslocamentos compulsórios. Há também movimentos com pautas relacionadas à moradia e à mobilidade urbana, demanda que não surgiu de repente. No entanto, se os manifestantes dialogam com a agenda dos movimentos sociais, eles não se limitam a essa agenda, e a extrapolam em direção a diferentes causas. O que aconteceu foi que houve uma confluência dos movimentos sociais com os anseios dessa juventude ativa nas redes sociais e ávida por uma atuação política. Nesse sentido, é importante dizer: essa discussão sobre não existir pauta, sobre o movimento ser desordenado, não procede. Existem pautas, sim. Elas apenas são variadas e plurais – assim como são variados e plurais os anseios sociais e os próprios movimentos sociais. Na história recente do Brasil, o perfil dos movimentos nos indica a pulverização de pautas. Também em eventos de envergadura internacional, como o Fórum Social Mundial, as pautas são diversificadas. A ideia de unidade nem de longe é capaz de abarcar a pluralidade social do nosso país e dos tempos atuais.

Por que todo esse movimento explodiu exatamente agora?
Penso que a Copa das Confederações funcionou como estopim e conjuntura. O evento catalisou insatisfações e demandas que já existiam no tecido social, e acrescentou outras demandas a essa série. O absurdo de se demarcar um “Território Fifa” dentro de um país, por exemplo, materializou um poder global que fere a soberania de um povo e de um Estado. Para muitos, isso foi a expressão concreta de uma rotina de ingerência internacional inaceitável sobre o estado-nação, simbolizando um poder, um tipo de dominação internacional que também se repete em outros contextos — e que as pessoas não estão querendo mais aceitar.

Essa matriz é a mesma que vem motivando manifestações mundo afora, como as da Turquia, que acontecem atualmente, ou as primaveras árabes?
O que já conseguimos perceber é que esse é um movimento que extrapola o Brasil, e que dialoga de fato com o que vem acontecendo mundo afora. Todas essas manifestações se comunicam de alguma forma, mas a gente ainda precisa entender melhor como as conjunturas particulares dialogam formando uma conjuntura diversa, porém, global. O que já se pode perceber é que esses movimentos apontam, a partir de diferentes expressões, para uma insatisfação generalizada com o modelo societário ocidental, com o sistema mundial capitalista, mesmo que essa não seja exatamente a forma de expressá-la. Os movimentos occupy são uma das sementes dessas erupções sociais atuais. O que vemos é uma rejeição a esse “sistema-mundo” capitalista, pautado em uma economia de acumulação especulativa. É um modelo global que torna a vida cotidiana cada vez mais segmentada e que acarreta segregação socioespacial, entre outras.

A “revolução” brasileira então se apresenta como parte de uma revolução maior, de amplitude global…
Não sei se podemos falar de uma revolução propriamente dita. Mas o movimento que desponta agora no Brasil se comunica com o contexto internacional no sentido de uma ampla rejeição ao modelo econômico global, ao lugar que o Brasil nele ocupa como um produtor internacional de commodities, acarretando assimetrias e desigualdades na apropriação dos recursos. É uma rejeição a um modelo que implica necessariamente um desenvolvimento desigual, daí a demanda manifesta por saúde, moradia, transporte, educação. É aí que a juventude está colocando a sua grande insatisfação. Pelo mundo, há conjunturas particulares, mas algumas questões em comum — em especial, a crise econômica de 2008, que denunciou de forma mais clara ao mundo os mecanismos de funcionamento do modelo atual. Essa é uma visão do cenário, uma hipótese que traço nessa leitura inicial que já podemos fazer deste processo de mudança social e política. Claro, é preciso mais tempo para que se possa verificar o que de fato se concretizou, e então se construir significados mais sólidos para os acontecimentos. Mas uma coisa já é clara: existe uma demanda específica por grandes mudanças estruturais, e não só paliativas e pontuais.

Como essa crise de modelo social se delineou no Brasil?
Em meados dos anos 80 foi consagrada uma ideia, uma espécie de pacto em torno de uma tríade: a possibilidade de crescer economicamente, preservando o meio ambiente e distribuindo renda. Essa ideia foi chamada de desenvolvimento sustentável. Criou-se a falsa impressão de que havia um consenso político sobre isso, de que todos estavam pactuados em torno disso. Marcos regulatórios e instituições foram construídos para concretizar tal ideia. Essa crença dominou até meados dos anos 1990, mas, aos poucos, começou a ficar claro que, na prática, apenas uma parcela da sociedade estava tomando decisões para todas as partes. Governos e empresários caminharam de mãos dadas, em prejuízo da real distribuição de riqueza e da sustentabilidade. Nos anos 2000, começam a surgir fortes questionamentos ao sistema neoliberal. E isso no mundo todo, não apenas no Brasil. Surgem mobilizações na França, por exemplo, iniciativas como o Attac (attac.org) visando um novo paradigma de globalização. Com o 11 de setembro de 2001 nos EUA, houve uma quebra nesse processo. O tema do terrorismo galvanizou atenções internacionais e, por aqui, a eleição de Lula, no ano seguinte, gerou grande euforia, adiando o conflito latente entre os que tomam parte e os que são impedidos de tomar parte dos processos políticos, econômicos e sociais.

Dessa conjuntura saíram as pautas dos manifestantes…
O filósofo francês Jacques Rancière diz que a política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Nas movimentações atuais não há uma agenda única, assim como ainda não há o desenho do novo modelo que se quer. No decorrer dos dias, as pautas foram ganhando corpo, profundidade, se ampliando. Combate à homofobia, reforma política e partidária etc. Ouvir que há um homofóbico na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados é um acinte. A novidade, agora, é que a sociedade mostra que se cansou de ouvir coisas assim. Não querem que os políticos tripudiem das instituições: é isso que põe em risco a democracia, não as manifestações. Subestimaram o povo, abusaram do poder. O que vemos nas ruas é consequência disso. Por outro lado, a diversidade da sociedade revela também a existência da violência, da intolerância, dos preconceitos. A mídia conservadora aborda o tema generalizando e banalizando a questão como forma de desqualificar os movimentos como um todo. É importante que a sociedade possa debater sobre isso e perceber que a violência é estrutural, e que o movimento naturalmente não contempla só uma mudança positiva. O importante é que os movimentos de cunho mais emancipatório ajam de forma a politizar sentimentos morais, evitando retrocessos por meio de formas totalizantes e opressoras. Por isso, são preocupantes as manifestações de ojeriza às bandeiras plurais.

Há também um discurso “contra a corrupção”, contra as formas de abuso de poder…
Sim, e vem aí um discurso moral, mas é preciso entendê-lo como uma retórica por meio da qual a ampla insatisfação política se manifesta. Em si, o discurso contra a corrupção contém também um segundo significado. Nele também se diz “eu quero fazer política”. E é isso que está acontecendo agora: parte dos sem-parcela estão requerendo – nas ruas – ser uma parcela; participar da política. Rancière, que mencionei, mostra que a base da política não é o acordo, mas sim o conflito, o próprio desentendimento. E é nesse sentido que o que acontece nas ruas é política em sua plenitude. Política em prol de cidadania, de maior participação nos processos de decisão.

Essa demanda por participação direta talvez seja uma das questões mais problemáticas para os políticos…
Mas já há alguma abertura. Ao assumir em seu discurso que as pessoas nas ruas, para além de todas as bandeiras práticas, também reivindicam mais participação, a presidente Dilma acaba reconhecendo, por consequência, que existe esse déficit de participação, que há, sim, um déficit de cidadania. Isso já é um resultado muito positivo, inclusive para a própria presidente. Os sem-parcela querem ser partícipes. É um primeiro passo. Espero que a sociedade aproveite o momento para instituir novas formas de controle social.

Os governos não esperavam que algo assim pudesse acontecer?
Os governos estão perdidos tentando responder e acalmar a ira do povo. É um momento delicado da política. Estão surgindo as primeiras tentativas de responder pragmaticamente a demandas objetivas. Mas que não são as únicas — nem as mais importantes. Como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, a transformação da corrupção em crime hediondo, entre outras. Estas já eram pautas do próprio governo, que apenas estavam no fim da fila pelo próprio jogo político. Temos também o caso da redução dos preços das passagens. São pautas importantes, mas superficiais, pontuais e imediatas. E que dialogam com a pauta do próprio governo. É preciso debater isso para separar o joio do trigo; construir estratégias para colocar na pauta política as mudanças mais profundas que a sociedade almeja. Analisar o que está sendo de fato atendido e dialogar com as pautas efetivas dos movimentos. Um novo pacto, em resumo.

Estamos na iminência de mudança de nosso modelo político, de nosso contrato social?
Foucault usa o termo “governabilidade” para falar sobre a forma de governo do estado moderno: a substituição do “governo de política” pelo “governo de polícia”, situação em que vivemos hoje — não só no contexto das manifestações, mas no cotidiano político brasileiro mesmo, em que a gestão pública busca “conformar” o cidadão em uma situação que permita controlá-lo, e que subjuga toda a diversidade do social. “Governo de polícia” é uma forma de violência contra o povo. E estamos falando de governo em todos os níveis: municipal, estadual e federal, e que agora é também questionado em todos os níveis. O que está sendo questionado também é justamente esse modus operandi de governar. As ruas estão dizendo: sou negro, sou índio, mulher, homossexual, e tantas outras coisas mais. Somos diferentes. Não venha me reduzir a números, que não aceito isso mais. Esse padrão de uniformização útil à governança – mas tão terrível à cidadania – não corresponde à realidade da sociedade, que agora ocupa as ruas. As ruas dizem que os políticos não podem mais fazer o que querem sem serem contábeis pelos seus atos. Oxalá seja este um ganho irreversível.

Fonte: UFMG

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