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A independência e o povo

*Por Rubens Goyatá Campante, é doutor em sociologia, pesquisador do Núcleo de Pesquisas do TRT/MG e filiado do Sitraemg
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No dia 7 de setembro de 1822, foi o grito. O jovem regente Pedro leu, às margens plácidas do riacho Ipiranga, as cartas das cortes portuguesas que ordenavam que ele voltasse para Portugal, tirou a espada e gritou “independência ou morte”.

Depois, veio o mito. O 7 de setembro como data oficial da Independência. Mas houve, no próprio ano de 1822, episódios mais importantes. Em janeiro, o chamado dia do Fico: as tropas portuguesas no Rio de Janeiro tentaram embarcar Pedro à força no navio de volta a Portugal, e ele resistiu, apoiado pela esposa D. Leopoldina, por seu então amigo José Bonifácio e, principalmente, pelo povo do Rio. Em dezembro do mesmo ano, a coroação do regente como D. Pedro I, Imperador do Brasil.

O mito maior, porém, nem é o da escolha do dia, mas o entendimento de que a Independência terminava ali, ou, no máximo, em 1824, com a Constituição, e que ela resultou de um mero acordo entre elites, sem qualquer participação popular. Não foi assim.

A independência foi o processo de transformação das várias Américas portuguesas em um país unitário, chamado Brasil¹, algo que não estava garantido de antemão. Não estava “escrito nas estrelas” que a América portuguesa seguiria destino diferente da América espanhola, que se fragmentou em vários novos países. A unificação não foi imediata, não foi “natural” em seus antecedentes nem previamente garantida em suas consequências, e tal lentidão e incerteza devem-se, entre outras coisas, ao fato de que ela envolveu, sim, luta e participação popular.

Não havia, até o início do século 1800, essa entidade nacional chamada Brasil, pronta, madura, a ansiar pelo momento oportuno da emancipação do jugo colonial. Desejos de emancipação havia, como o demonstram a Inconfidência Mineira ou a Conjuração Baiana de 1798, mas seus objetivos eram regionais. O primeiro impulso unificador foi a chegada da corte lusa e a elevação política da área colonial, como um todo, a Reino Unido de Portugal, em 1815, e foi entre a camada realmente privilegiada por esta ascensão política e econômica, as diversas elites regionais e urbanas, que a ideia começou a se desenvolver.

Para a maior parte dessas elites, no entanto, era satisfatória a condição de Reino Unido a Portugal. O estopim da separação foram as intenções do movimento liberal constitucionalista português de 1820 de exigir a volta da família real e da Corte a Portugal, e de recolonizar e fragmentar novamente as possessões americanas. Além disso, propunha-se privar os brasileiros do acesso aos altos cargos administrativos – gravíssimo para uma elite patrimonialista, parasitária do Estado, como a luso-brasileira.

As oligarquias do sudeste (Rio, São Paulo e Minas) convergiram, então, em torno no príncipe regente Pedro num projeto de independência e de unificação de todas as regiões que compunham a América lusa em um só país. Além dos ganhos evidentes na formação de uma nova nação tão grande e populosa, a unificação ajudava na defesa da ordem escravista, que enfrentava contestações externas e internas. Externas como a da poderosa Inglaterra, interessada em acabar com o robusto e autônomo sistema comercial escravista que unia, no Atlântico Sul, a África (especialmente Angola) e a América (especialmente os três grandes portos do comércio escravagista: Rio, Salvador e Recife). E desafios internos, como o das várias rebeliões dos escravizados, além do temor generalizado, não só aqui mas em outras áreas escravistas, como Caribe e Sul dos EUA, com uma eventual repetição da revolução haitiana, que, na virada do século 1700 para o 1800, expulsara os brancos do país e criara uma nação dirigida pelos ex-cativos.

Em províncias com grande presença de portugueses, como Maranhão, Piauí e Pará, houve resistência à emancipação, controlada com ajuda de frotas mercenárias. Na Bahia (Salvador e recôncavo baiano), uma verdadeira guerra civil, vencida, ao fim, pelos independentistas.

Para “fundar” e legitimar a nova nação D. Pedro I convocou uma assembleia constituinte, mas logo dissolveu-a à força, já que resistia a seu projeto centralizador. O príncipe impôs, então, em 1824, de forma unilateral, uma Constituição formalmente liberal e limitadamente representativa, mas que ignorava o trabalho escravo, base do país, e ainda instituía o chamado Poder Moderador, que colocava o monarca acima e além de qualquer lei ou poder do Estado².

Como reação ao centralismo da Constituição de 1824, ocorre a Confederação do Equador, em Pernambuco, movimento armado de inspiração republicana, liberal e norte-americana. E regionalista, em vez de propriamente “brasileira”: a federação proposta abrangeria o Nordeste, somente. O movimento foi sufocado e seu líder mais expressivo e popular, Frei Caneca, executado³.

Pedro I abdicou do trono brasileiro em 1831, deixando seu filho de cinco anos como herdeiro do trono. Sua popularidade tinha se desgastado pela repulsa que seu lusitanismo despertava (costumava cercar-se de portugueses) e pela caótica situação econômica do país, advinda da pesada indenização que o Brasil teve de pagar para que Portugal se conformasse com a separação e pelos empréstimos tomados para financiar as desastradas intervenções militares na região platina 4. Os escândalos amorosos e sexuais também contribuíram para a impopularidade do primeiro Imperador 5.

Durante a menoridade de Pedro II, no período conhecido como Regência, a unidade do país recém-criado por pouco não se perdeu. Houve uma série de revoltas, de caráter separatista, quase todas com expressiva participação popular.

Em Pernambuco, em 1831, o movimento rural dos cabanos, precursor de episódios como o de Canudos. Na Bahia, diversas revoltas da população escrava, desde o início do século até a mais expressiva delas, a revolta do Malês, escravos e libertos islamizados, em 1835, sempre duramente reprimidas, além da rebelião federalista e republicana chamada Sabinada, em 1837, em que boa parte de Salvador foi incendiada e na qual morreram cerca de 2 mil pessoas, numa população aproximada de 70 mil habitantes.

No Maranhão, assistiu-se, durante a regência, à revolta popular apelidada de Balaiada, que contou, inclusive, com uma milícia negra de 3 mil escravos fugidos: foi sufocada com o saldo de 5 mil mortos. No Rio Grande do Sul, o conflito mais longo de todos, a guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845, que também cobrou pesado tributo de sangue. E no Pará, a revolta mais sangrenta, a Cabanagem, em 1835: os números apontam 30 a 40 mil vítimas, mais de 20% da população de uma província de 150 mil habitantes! Como se pode dizer que o processo de formação brasileira foi “pacífico”?!

Certeira, portanto, a observação do historiador Francisco Iglésias sobre o processo de Independência: “Não se veja no episódio uma simples parada, uma festa (…) Se não houve aqui as batalhas vistosas da guerra pela emancipação das colônias espanholas, a separação de fato custou sangue, sacrifícios”6.

Sim, o povo deu sua cota de sangue e sacrifícios. Demonstrou claramente sua vontade de liberdade. Porém, suas condições e seus recursos – econômicos, políticos, militares, cognitivos – eram escassos. Seus horizontes eram limitados – não, é claro, por uma espécie de “culpa” própria, intrínseca, mas pelo grau de evolução e maturidade em que se encontrava. Seus objetivos eram difusos e amorfos e sua avaliação dos problemas próprios e coletivos era superficial. O que havia de mais organizado e organizável eram as elites, eram elas que, além de mais poder, tinham metas mais simples, objetivas: manter, sob o novo formato político de nação independente, a estrutura social e econômica oligárquica. E assim, as elites formaram, da fragmentada herança colonial, um país à sua imagem e semelhança – unitário, mas marcado pelo divórcio entre o estado e a nação, o poder e o povo.

Esse país somente se consolidou com a ascensão do Imperador Pedro II ao trono, em 1840. Ascensão precoce, aos 14 anos, pois era urgente usar o cimento ideológico da monarquia, com seu imenso prestígio, para consolidar a unidade nacional em perigo. E em 1850, dez anos depois da posse de Pedro II, o arremate final da construção do Brasil excludente: com o fim do tráfico de escravos, e a perspectiva de, em mais alguns anos, a escravidão se acabar, a Lei de Terras fecha o acesso à propriedade dos ex-escravos e dos futuros imigrantes. O trabalho estava, pelo menos formalmente, liberado, mas, justamente por isso, a terra não. 7

O curioso nessa elite brasileira é que, mesmo tendo formado um país à sua imagem e semelhança, ela, salvo honrosas exceções, não aprecia seu país. Não tem compromisso com seu desenvolvimento e sua soberania. Líderes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek ou Lula são enxovalhados por ela ao tentarem tal desenvolvimento e soberania. E ao tentarem, também, distribuir uma parte das nossas riquezas ao povo, uma parte apenas, de forma meramente reformista, jamais, nem de longe, revolucionária. A elite os odeia por isso.

Recentemente, boa parte dela, abrigada na extrema direita, começou a se dizer “patriota”! Mas ser nacionalista, realmente, envolve muito mais que ostentar a bandeira nacional, a camisa da seleção ou cantar o hino. São símbolos nacionais importantes. Devem ser respeitados. Mas defender os interesses de nosso país vai além, e geralmente é mais difícil. Como alguém pode se dizer “patriota”, por exemplo, e apoiar um bilionário estrangeiro poderoso e arrogante, como Elon Musk, que se julga no direito de descumprir, desrespeitar e xingar as leis e a Justiça brasileiras?

O descompromisso da maior parte da elite brasileira com seu país é uma de nossas piores heranças. Quanto ao povo, continua, em boa medida, a não participar do poder. Na China antiga, um Imperador, certa vez, quis educar o povo. Seu ministro o advertiu: “majestade, quando o povo souber ler e escrever, não nos respeitará mais”.

Para participar do poder, como tentou na época da Independência, é crucial que o povo saiba ler e escrever – no sentido literal, e, cada vez mais, digital, mas não somente. É crucial que o povo saiba ler a realidade e escrever sua própria história. Só assim teremos, juntas, a independência do país e do povo.


1 Em termos político-administrativos, as possessões lusas na América do Sul dividiam-se em duas regiões, sem qualquer ligação entre si a não ser partilharem a mesma Metrópole: o Estado do Maranhão e Grão-Pará, abrangendo o norte e a região amazônica, e o Estado do Brasil, abarcando o restante do território, Mesmo dentro deste último, as diversas áreas pouco se comunicavam, com exceção parcial da época da corrida do ouro, em Minas, para a qual se dirigiram milhares de pessoas daqui e d’além mar.

2 Francisco Iglésias qualifica a Carta de 1824 de “transição entre o absolutismo e o liberalismo”. De fato, muitos são tentados a chamar o documento de absolutista, devido, especialmente, ao Poder Moderador. Mas, naquele momento histórico, os reacionários e partidários veementes do antigo regime absolutista simplesmente rechaçavam as constituições, as quais seriam expressão das “abomináveis ideias francesas e norte-americanas”. Absolutistas eram Dom Miguel e D. Carlota Joaquina, irmão e mãe de Pedro, ou ainda os políticos da Santa Aliança, organização retrógrada surgida após a queda de Napoleão, em 1815, cujo objetivo era voltar a Europa à ordem anterior à Revolução Francesa. Constituição, na época, era o que havia de mais promissor, avançado, moderno, liberal – um fetiche, uma espécie de panacéia, de forma, obviamente, um tanto quanto idealizada e romantizada. Portugués, no fundo, mas com gosto pelo Brasil, Pedro I era também autoritário, no fundo, mas com gosto pelo liberalismo e pela Constituição. Admirador de Napoleão (de quem foi concunhado, inclusive), constitucionalizou dois países, tendo sido, em Portugal, o responsável por bater militarmente as forças absolutistas de seu irmão Dom Miguel.

3 Pernambuco já tivera, em 1817, outro movimento armado separatista, de características e objetivos semelhantes: republicano, liberal e de inspiração norte-americana.

4 Começava aí o endividamento externo do país, em que o Brasil paga mais de juros que a própria dívida original, a qual nunca é quitada. Segundo Iglésias: “o empréstimo de 1824-25 montou a cerca de 12 mil contos de réis no recebido. Quarenta anos depois, em 1863, o Brasil havia resgatado cerca de 5 mil contos e gasto com juros pouco mais de 60 mil, ou seja, cinco vezes o recebido” (IGLESIAS, Trajetória Política do Brasil: 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pg. 130)

5 Na cultura machista e patriarcal da época, era tido como “normal” um homem poderoso ter amantes fora do casamento. Mas Pedro I extrapolou, mesmo para os padrões da época. Não tinha limites em relação a qualquer mulher que o interessasse. Humilhou publicamente a imperatriz, Dona Leopoldina, filha de um dos homens mais poderosos da época, o Imperador Francisco José, do Império Austro-Húngaro, ao expor ostensivamente a amante Domitila, a quem deu o título de Marquesa de Santos. Tanto que, viúvo, tendo a imperatriz morrido de solidão e depressão, foi-lhe difícil conseguir outra noiva nas casas reais européias. Várias disseram não às propostas de novas núpcias para o Imperador.

6 IGLÉSIAS, op. cit., p. 115.

7 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2018.

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