Artigo – A possível “volta” do Muro de Berlim

Compartilhe

O muro de Berlim caiu em novembro de 1989, catalizando uma mudança na paisagem da geopolítica mundial que vem se desdobrando até hoje. Aparentemente o mundo do passado teria desaparecido de todo. Mas não é bem assim. O muro está de volta. Ou pelo menos a sua assombracäo.

Flávio Aguiar

BERLIM – Numa dimensão econômica algo floclórica, o caso é engracado. Em quase toda Berlim o muro foi erradicado. Hoje há quem lamente isso: pensa-se até em levantá-lo de novo em pontos estratégicos. Por quê? Porque ele significaria divisas para cidade, gracas ao afluxo de turistas, que procuram avidamente o que dele restou.

Mas há uma dimensão política que trouxe o muro de volta das cinzas em que ele repousava. Neste final de abril, no domingo 27, houve o primeiro plebiscito da história de Berlim. O tema envolvia um confronto entre projetos alternativos e excludentes para o antigo aeroporto de Tempelhof, encravado na cidade. O Senado berlinense aprovou uma proposta, tempos atrás, fechando o aeroporto, cujo uso hoje é residual, a partir do final de 2008. Seu destino seria incerto: há projetos para transformá-lo num parque, num museu, além de outros usos, que a cidade debateria e escolheira, através de consultas e de seus representantes. Entretanto a CDU – a conservadora União Democrata Cristã, da premiê Ângela Merkel – apresentou uma proposta alternativa, mantendo o aeroporto em funcionamento para aviöes de pequeno porte, vale dizer, entre outros, pequenos jatos executivos.

O resultado e seus comentários na imprensa trouxeram algumas surpresas. Em primeiro lugar, na votação geral, a proposta de manutenção do aeroporto em funcionamento ganhou, por 60,2% contra 39,8% dos votos. Ganhou, mas não levou: para derrubar a decisão do fechamento, era necessário o comparecimento de pelo menos 25% dos eleitores registrados, e isso näo aconteceu. Assim, o fechamento tornou-se irreversível, e o prefeito da cidade, Klaus Wowereit (tido como à esquerda, no espectro político alemäo), deu uma declaração dizendo que agora é necessário tocar a discussão para diante, ou seja, discutir e decidir sobre o futuro daquele espaço.

Entretanto, o mais importante ficou por conta do desenho da cidade que a votação revelou.

Tempelhof é um marco histórico em Berlim, por várias razões. Foi construído ao tempo do nazismo, e sua arquitetura, monumental na afirmação da autoridade das paredes e das colunas hieráticas, revela essa origem. Por outro lado, foi o aeroporto que serviu para o abastecimento do lado ocidental da cidade, ao tempo da Guerra Fria, quando os soviéticos decidiram fechar o acesso por terra. Os norte-americanos organizaram uma ponte aérea a partir do ocidente que manteve a cidade abastecida durante a prolongada crise.

Além dos verdes e dos ecologistas de um modo geral, a esquerda se posicionou contra a manutenção do aeroporto, com o argumento de que ele serviria apenas aos mais ricos, a um custo ambiental desproporcional em relação às vantagens.

O mapa da votacäo mostrou que a proposta de manter o aeroporto ganhou na maioria dos bairros da antiga Berlim Ocidental. A de seu fechamento, venceu na maioria dos bairros da antiga Berlim Oriental. Nos bairros mais pobres, a alternativa do fechamento venceu. Nos mais ricos, ou de classe média alta, venceu a manutenção. Politicamente, no sentido estrito, o resultado ficou equilibrado. A direita (CDU) venceu a votação, mas não mobilizou nem mesmo seus efetivos tradicionais. A esquerda perdeu a votação, mas em compensação mostrou estar recuperando um terreno considerável. Logo depois da queda do muro, a partir de 1989, formou-se uma imagem da cidade que via o lado Oriental como base da direita.

Esquerda, se havia, era do lado Ocidental, e mais intelectualizada. Com os anos de crescimento do desemprego, e com a adesäo da maioria do SPD (o Partido Social Democrata) ao ideário neo-liberal, essa tendência teria se acentuado. Entretanto, fatos como a popularidade do prefeito Worwereit (que se reconhece publicamente como homossexual) e agora esta votação plebiscitária com a inclinação para do Leste para as bandeiras tidas como tradicionalmente de esquerda, mostram que o quadro é mais complexo do que aquela versão simplificadora.

Também se pode atribuir esse surpreendente desenho político que se manteve na cidade a fatores tais como: o tempo, no domingo, estava excepcionalmente primaveril, e a população que votaria pelo aeroporto preferiu ir aos parques e cervejarias ensolaradas do que ir votar; ou ainda, Tempelhof era um ícone de identidade para o lado Oeste da cidade, que esté perdendo símbolos, uma vez que o Centro da Berlim unificada está se deslocando para Leste, em direção ao portão de Brandemburgo, à nova estação central de trens (Hauptbanhof) e à Alexanderplatz, onde, aliás, fica a prefeitura. Assim o eleitorado do Oeste teria votado também em favor de um símbolo cultural de seu mundo.

É claro que, nessas circunstâncias, as causas e motivações são muitas, e é impossível atribuir tudo a uma única dentre elas. Mas o certo é que o desenho político da cidade não só ficou mais complexo, como mostrou também que as antigas clivagens estão mais vivas do que nunca. O mesmo acontece na Europa como um todo, onde, como mostrou o conjunto de posições em torno da independência da província do Kosovo em relação à Sérvia, a Guerra Fria prossegue viva, embora menos ideológica e mais pragmática. A OTAN continua querendo cercar a Rússia, e esta continua querendo manter sua ascendência sobre países e territórios que vê como de sua órbita.

Fonte: Agência Carta Maior

Compartilhe

Veja também

Pessoas que acessaram este conteúdo também estão vendo

Busca

Notícias por Data

Por Data

Notícias por Categorias

Categorias

Postagens recentes

Nuvem de Tags