Análise do “Dr” Sócrates sobre a máfia do futebol

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A moral das quadrilhas
Em organizações clandestinas, encontramos uma moral particular, construída de acordo com os interesses dos poderosos e que em nada se aproxima daquilo que conhecemos como leis sociais, cujas elaborações têm como preocupação a busca do equilíbrio entre seus concidadãos. Quem mora ou morou no Rio de Janeiro e teve contato com os morros cariocas sabe muito bem do que estou falando.

Vivi ali em meados da década de 80 e tive a oportunidade de colaborar como médico em um posto de saúde na Favela do Pavãozinho, que, se não me engano, fica bem atrás do bairro de Ipanema. Condições de vida absolutamente díspares. E, pior, com o Estado e seus serviços essenciais completamente ausentes.

Essa realidade é um excelente meio de cultura para abrigar estruturas que se organizam ao largo dos braços da legalidade. Lembro que, na primeira vez que me dirigi ao posto, fui recebido por um garoto que não tinha mais de 10 anos. Atencioso, ele disse que estavam me esperando e que, a partir dali, eu deveria me sentir protegido, assim como o meu carro, e me encaminhou morro acima.

Durante o trajeto, pude perceber que várias figuras nos espreitavam em locais estratégicos, sem jamais se colocarem à nossa frente, com o claro propósito de nos acompanhar até o destino. Na volta, seguiram a mesma rotina até que eu me despedisse. Pelo que posso entender, era uma estrutura ainda pequena comparada à que presenciamos hoje. O negócio ilegal cresceu e, com ele, toda a sorte de problemas para as comunidades que convivem com essas organizações.

Se não houver uma mudança de postura dos diversos níveis de estrutura estatal, assumindo a sua responsabilidade em relação àqueles que vivem em tais condições e respondendo à obrigação de fornecer serviços de boa qualidade em saúde, educação e segurança, a tendência é de nada se modificar ou piorar ainda mais.

Podemos fazer uma interessante correlação com o esporte no Brasil. Há algumas décadas, os dirigentes esportivos eram, em sua maioria, verdadeiros mecenas dos clubes que dirigiam. A paixão provocava atitudes muitas vezes irracionais, para que as entidades a que serviam pudessem sobreviver. Colocavam recursos a fundo perdido nos cofres e só os retiravam se a situação financeira melhorasse.

Talvez já houvesse malandros em algumas instituições, mas o negócio era pequeno e não interessava a muitos. Já se percebia em alguns clubes que seus presidentes tudo faziam para se manter no poder e conseguiam lá permanecer por décadas. Mas o interesse em se perpetuar estava relacionado a vaidades pessoais ou pretextos de uma futura carreira política.

A ausência de controle do Estado já se fazia perceber e isso permitiu que alguns grupos enraizados dentro de algumas das estruturas começassem e se organizar de forma a não só se manter no comando como também estudar outras formas de utilização da popularidade do esporte.

Em pouco tempo, o negócio cresceu de forma assustadora e rios de dinheiro começaram a gravitar em seu entorno. Com isso, os olhos dos que queriam fazer fortuna sem muito suor se voltaram arregalados para esse meio. Chegar ao poder era a tarefa mais fácil e tudo o que necessitavam depois era montar uma organização que possibilitasse gerir com total liberdade, sem ser incomodados por ninguém. E assim se fez.

Contam-se nos dedos os clubes, federações e confederações brasileiras que conseguiram escapar da velha forma de governar, em que desvio e lavagem de dinheiro, compra de votos para se eternizar no poder, corrupção ativa e passiva, negociatas paralelas e muito mais são costumes endêmicos.

E o resultado é que quase todos estão em estado pré-falimentar, enquanto seus dirigentes se tornaram verdadeiros magnatas. E tudo isso sem chamar a atenção do Estado brasileiro.

Tanto o Estado é ausente que as máfias nasceram e floresceram em todos os cantos. Pior: em vez de investigar, controlar e punir para sanear o meio, resolve premiar esse tipo de conduta com um novo aporte de recursos por meio de uma loteria específica.

Pode-se comparar hipoteticamente com um empréstimo do BNDES para a logística de transporte, estoque e comercialização dos produtos preferidos das organizações do morro, caso estivessem com algum problema de caixa. Não se pode tratar quadrilha com benevolência. O que está acontecendo no Corinthians é regra no esporte nacional e não exceção.

OBS: Sócrates é ex-jogador de futebol da Seleção Brasileira e do Corinthians e outros clubes.

Fonte: Revista Carta Capital

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